terça-feira, 18 de novembro de 2008

Para uma sociedade aberta no ano 2000


Pela nossa parte, porém, somos tão optimistas e persistentes como até aqui, mesmo que a possibilidade existente seja quase a da “última hora” – uma daquelas, afinal, em que, segundo parece, os portugueses melhor agem. Além do mais, temos condições culturais, sociais, territoriais, geoestratégicas e climatéricas para vir a ser no ano 2000 um centro privilegiado de instalação de certas elites e tipos avançados de empresas europeias, com maior grau de mobilidade e carácter criativo. O mesmo processo de deslocação para as zonas costeiras e ambientalmente mais favoráveis ocorreu numa fase recente do desenvolvimento americano. Uma sociedade aberta deve também aspirar a ser uma sociedade “de primeira”, num país que, sendo ainda o mais pobre, é também o mais antigo sucesso de independência, aventura e criatividade política do continente europeu.
O nosso optimismo tem igualmente a ver com uma tradição que agora se celebra por remontar aos Descobrimentos – a de uma cultura aberta, tolerante e imaginativa. Temos mesmo a oportunidade de encerrar o longo processo de decadência e obscuridade que se sucedeu ao nosso “século de oiro”, porque a medida do nosso desafio estimula energias que estão ainda no fundo de nós e são vitais para sair outra vez de uma situação de periferia e mera integração pelo exterior. A situação não nos deixa, aliás, muitas alternativas de actuação e pode servir de “picador” contra um costumado auto-abandono às soluções apenas intermédias. A nova “segunda fronteira” portuguesa – a da Europa – é, aliás, a da pátria da lógica e da razão sistemática, o que, finalmente, também confluirá para superar as contradições insanáveis, as hesitações e as resistências obscurantistas que têm impedido o pleno desabrochamento português.
Foi nesta perspectiva e nesta hora que nos continua a dar razão que pareceu útil recuperar um documento como o do Programa para uma Nova Década assim chamando o ânimo e a inteligência de uma das primeiras tentativas orientadas na direcção de uma “sociedade aberta”, para o nosso país no ano 2000. Alguns dirão a propósito que estamos de novo a pedir de mais. Nós julgamos estar a querer apenas o essencial, com um realismo que pode ser antecipado, mas apenas para recuperar o tempo perdido e a rapidez das mutações em curso. Sabemos que já se esteve mais longe de o entender assim. E como nem todos se podem sentar nas mesmas cadeiras do Poder, ninguém negará, por fim, que ir à frente e querer mais é, também, uma parte da oportunidade em Democracia – oportunidade pelo respeito e êxito da qual passa, igualmente, a modernização da nossa cultura política.

(prefácio de “Objectivo 92 – No Caminho da Sociedade Aberta”, Grupo de Ofir, 1988, p. 19 e 20)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Uma Constituição para Portugal (II)


1

Ao princípio não “era” o Estado mas o Homem – “era” o Homem, o espírito e o barro... É esta uma verdade em função da qual será o Estado a ter de se humanizar – não o Homem quem tem de se estadualizar...
Se assim for, a questão política número um – constitucional, por excelência – não é a de saber – qual deve ser o Estado? – mas esta outra – Que homem e que tipo e formas exteriores de humanidade queremos e podemos exprimir e realizar através da ordem política?
A questão do Estado não poderá ficar por responder mas tornar-se-á dependente. Consistirá tão-só em apurar – Qual o Estado que permite a esse homem sê-lo, o mais completamente que é possível?

a) Zarpar deste porto e com este rumo é a primeira condição para sair da galáxia do sub-desenvolvimento político.
Reina nesse mundo sediço uma crença apriorística no Estado – ora como sujeito, ora como objecto – sempre transcendente, tornando-se, em qualquer dos casos, causa virtual de idolatria ou, no reverso, de inumanidade.
As raízes da crença aludida podem, de facto, ter duas origens: em primeiro lugar, a contemplação do Estado como uma pessoa ideal, que só se avista ao longe, qual alma penada terrificante, mas que ao perto é apenas o vácuo “embalsamado” em formas jurídicas – concepção idealista (liberal); em segundo lugar, a consideração do Estado como um objecto real, não só objectivo, como posto até contra as pessoas, produzido como detrito das convulsões dialécticas de uma História, por sua vez também, integristicamente objectiva – concepção materialista (anti-liberal).
Quer a primeira sereia, quer o segundo oráculo, têm de “providencializar” o Estado e reclamar, a “ferro e fogo”, a sua “soberania” – de pessoa jurídica, num caso, ou de facto material no outro, a ideia suprema ou o destino irrecorrível, respectivamente. Fundamento e predestinação de Estados basicamente voltados para a luta, a conquista ou a guerra – de defesa ou de agressão – essas teorias comportam, tanto quanto alimentam, um enorme potencial de poder absoluto.
Pôr a soberania como o axioma político da Constituição é, implicitamente, pôr a sujeição do homem antes da auto-determinação do homem – ou considerar a liberdade apenas uma excepção à obediência. Em qualquer dos casos, se a soberania prudentemente mantida de reserva, se torna possessa ou renitente, o mais que nesse contexto se poderia locubrar seria o exorcismo dos velhos “demónios” para aplanar a descida de novos “anjos”... igualmente soberanos... renovando a perpetuação do erro.
Para qualquer das “ideologias” aludidas – negativo e positivo de uma mesma cultura – o Homem é como um retardatário, encontrado contra vontade, de vez em quando e à última hora, isto é – apenas como limite do Estado. O máximo de esforço que essas propostas são capazes de fazer pelo Homem é uma esmola: pedir ao Estado que consinta em ser melhor na “sua” moral (mais humano) ou menor na “sua” extensão (menos desumano).

b) A alternativa que se opõe e supera tais “visões” políticas pressupõe uma “viragem copernicana” na consideração da ordem política. Isto é: a instituição do Homem como centro de gravitação política, reservando aos reais factores constitutivos do Humano a precedência que as culturas políticas “conservadoras” reservavam ao Estado e à sua Constituição.
Se se quiser acabar com o medo como problema político, é pelo Homem e não pelo Estado que tem de se começar. O medo é, de facto, o peso e a sombra de um ente estranho e sobre-humano que nos ladeia e espreita desde a nascença. Ora a verdade é que o Estado só existe depois de pensado, só depois de nós. (...)

("Uma Constituição para Portugal", Coimbra, 1975, p.4-5)

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Regionalização e Europa



A consideração do fenómeno regional na construção europeia passou por várias fases. Podemos destrinçar pelo menos três: a dos anos setenta em que as regiões não existem nos Tratados; a da nova política regional dos anos oitenta até aos anos noventa, em que a política é concebida apenas de acordo com o factor territorial e o factor económico; e a posterior aos anos noventa, com o Tratado de Maastricht nomeadamente, em que as regiões são adoptadas ou integradas na política comunitária, como um factor político e institucional, ainda que modesto, já não apenas como um factor económico e territorial.
E se é duvidoso que a CIG-96 venha já a abrir um novo ciclo neste domínio, travado não só pelo retorno do intergovernamentalismo, como, sobretudo, pela sombra de outras prioridades, a evolução do fenómeno regionalizador continua a enfunar as suas velas. Para muitos, a Europa ofereceria hoje, até, uma espécie de quadro “neo-medieval” em que se progride no topo em termos de uma maior unidade e centralidade política, qual versão democrática dos tempos do Papa e do Imperador, enquanto na base cresce um pluralismo de entidades intermédias, como as Regiões.
Este último escalão permitiria satisfazer, ao mesmo tempo, objectivos da “nova democracia” e do “novo desenvolvimento”, ambos mais próximos, respectivamente, da vontade e das necessidades dos cidadãos. A “ferramenta” institucional da democracia será cada vez mais precisa à defesa da identidade, formas de coesão e estratégias, construídas e afirmadas, subsidiariamente, de baixo para cima e do particular para o geral.
Por um lado, o instrumental jurídico-institucional é hoje considerado prioritário a todos os níveis de desenvolvimento. As debilidades competitivas teriam, muitas vezes, origem mais na falta desses instrumentos de que na escassez de recursos. O direito e a democracia são, a todos os níveis, os primeiros e mais valiosos utensílios para a realização da ambição colectiva. É com eles que procuram equipar-se as “unidades geo-culturais” (P. Häberle) que são as regiões.
Por outro lado, tratar-se-ia de evitar novos absolutismos do geral, propiciados muitas vezes pelos hiatos da construção democrática. É por essa razão que estamos hoje não apenas perante um quadro social plural, mas pluralístico, para o qual o pluralismo já não é só uma realidade mas um valor positivo, activo e querido.
Além disso, é preciso assegurar um continuum entre o local e o global na defesa e promoção do desenvolvimento. Numa economia mundializada, as comunidades infraestatais com suficiente identidade cultural também não prescindem do espírito empresarial nem de vontade política própria. Carecem, por isso, de dimensão e autonomia para serem reconhecidas pelo mercado.
Entre o local e o mundial, a defesa e a comparticipação das várias formas de identidade organiza-se, assim, do modo mais homogéneo e horizontalizado. Por isso, as regiões voltam a procurar um lugar, sobretudo numa Europa onde a respectiva tradição lhes confere um suplemento de força e legitimidade.
A mundialização produz uma fragmentação atomista que ao nível social conduz ao individualismo. A regionalização, vista ela própria como ruptura, é afinal, neste novo cenário, uma forma de combater aquela forma extrema de desagregação dos laços sociais das comunidades intermédias e de estruturar, grau a grau, patamares de formação de unidade social.
Na reorganização das formas políticas que a internacionalização desafia, a regionalização avança, porém, como uma forma de aprendizagem institucional, por isso mesmo reformista, adaptativa e gradual. Tal adaptação tem de ter em conta, nomeadamente, o quadro externo, o qual não pode ser ignorado, neste como em qualquer outro problema político. Mais especificamente, mesmo quando o respectivo direito não é determinante ou imperativo a este propósito, será concerteza óbvio para todos que a União Europeia é a mais relevante moldura desse contexto.
Por um lado, todas as políticas da EU acabam por influir, de uma maneira ou de outra, sobre o território e a sua política de coesão económica, social e inter-regional é cada vez mais solicitada pelos próprios Estados-membros. Por outro lado, o peso da EU no seu conjunto representa o primeiro contraforte de defesa e a primeira alavanca externa das comunidades que a integram – Regiões compreendidas – face aos novos desafios da mundialização.Pode-se, pois, concluir que a construção europeia favorece uma cultura regionalizadora embora não a imponha e só escassamente a integre. Mesmo depois da CIG-96, ela continuará a assentar e a visar uma Europa dos Estados, embora, no terreno, a diferenciação regionalizadora vá continuar a crescer a um ritmo aproximado da integração e, sob esse aspecto, a carecer também de uma paralela atenção e a contribuir para a própria modelação da arquitectura conjunta.

(Regionalização e Europa, UAL, 1996)

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Entre 75 e 92

É certo que a passagem da “órbita” de 75 à “órbita” de 92 não é fácil. Mas não pode prescindir, nesta fase pré-conclusiva, da clarificação no fundamental, indispensável à estruturação de um novo ponto de partida, assim como dos futuros pontos cardeais do País. Ora, era tudo isto que constituía o espírito do Grupo de Ofir e do Programa para uma Nova Década. E é sobre isso que tem um sentido ainda mais premente reinterpelarmo-nos hoje. Por exemplo: é possível chegar à sociedade aberta em Portugal pela simples via do crescimento vegetativo ou da “aurea mediocritas” que ela satisfaz mas sem verdadeiro renascimento político-cultural do País? A partidarização e radicalização do domínio serão compatíveis com um movimento que tem de ser de ordem nacional e histórica? Ou, num escalão diferente: a metodologia heróica e antinegocial é a melhor para antecipar uma sociedade moderna que se pretende justamente o contrário disso? Ou, na tonalidade ainda mais imediata de uma preocupação idêntica: as reformas de que carecemos poderão ser operacionais como meros “pacotes” de medidas legislativas? Onde está, por outras palavras, um programa ou, pelo menos, uma agenda para 1992 que seja um elenco de prioridades e corresponda, simultaneamente, quer a um modelo de viabilidade do País na Europa quer a uma proposta de reidentificação cultural do Estado e da Sociedade portuguesa, na sua actual postura e tensão?


(prefácio de “Objectivo 92 – No Caminho da Sociedade Aberta”, Grupo de Ofir, 1988, p. 12 e 13)

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Uma Constituição para Portugal (1975)

I

O HOMEM E O ESTADO

FUNDAMENTO E DIRECTRIZES “FUNDAMENTAIS” DE UM PROJECTO CONSTITUCIONAL

1

Determinação de uma imagem “essencial” do Homem, como base de uma viragem “copérnica” na ordem política: o Homem soberano em vez do Estado soberano:

a) A crença no Estado: as opções tradicionais do idealismo (liberal) e do materialismo (anti-liberal).
b) O Homem como unidade política primordial e essencial: não apenas limite mas centro – autor e controlador – da organização e da decisão política.

1 – O Homem como unidade de convergência e integração da ideia e da realidade;
2 – O Homem como unidade de convergência e integração da História colectiva e da Experiência individual;
3 – O Homem como unidade de convergência e integração do Indivíduo e do Povo.

c) Condições pressupostas, em geral, por uma verdadeira “antropocracia” política.


2

Sentido e opções práticas gerais deste projecto no plano do Direito e da Organização Política da Sociedade e do Estado:

a) Distanciamento das concepções ideolátricas da Constituição:

1 – Da constituição-cartilha do doutrinismo (burguês ou marxista);
2 – Da constituição-puzzle do ecletismo ideológico (do corporativismo ou, hoje, da social-democracia);
3 – A “hominização” da organização e das relações políticas como alternativa, progressiva, contínua e universal, em contraste com as concepções tradicionais.

b) Princípios gerais e específicos da concretização de um projecto constitucional
de fundamento antropológico-político:

1 – Estado Liberal e Estado Democrático como Democracia Social e Estado de Justiça:

a) reinterpretação consequente dos “direitos fundamentais”;
b) reinterpretação consequente da “organização política”.

2 – Directrizes específicas mais salientes de um Estado Legítimo mas Eficaz:

a) o princípio da “dignidade do homem” como garante da unidade da pessoa através dos vários direitos fundamentais e para além deles;
b) direitos de participação e igualdade em todos os graus de uma organização político-administrativa descentralizada e democrática;
c) organização bipolar e alternativa de todas as relações entre os órgãos superiores do Estado e participação do povo e indivíduo na sua formação e actividade;
d) reconhecimento e garantia do pluralismo interno e internacional e da continuidade ascendente e colateral de todos os graus e formas de expressão do Homem, inclusive na passagem da ordem nacional à ordem internacional.


3

Porquê e em que termos a oportunidade de um projecto deste tipo, aqui, em Portugal e, agora, depois do 25 de Abril:

a) Factores inibitórios: os resíduos e a tentação de uma noção épica do Estado;
b) Factores propiciatórios: o fim do Estado-Territorial e consequente carácter supérfluo da “soberania” e da “força” como principais factores constituintes.



(“Uma Constituição para Portugal” de Francisco Lucas Pires, Coimbra, 1975, p.1-3)

sexta-feira, 11 de julho de 2008

O 10 de Junho em Macau

(...)
O nosso império mais real foi o dos mares que não são estanques mas móveis e profundos, e o prémio mais alto cuja atribuição Camões reconheceu aos Portugueses foi o da Ilha dos Amores, aliás toda ela entretecida nas malhas do reino marinho. Vivemos mais do encanto da descoberta que da força do domínio. A beleza é para nós por si só uma paga e não é o império da afirmação que mais conta.
É talvez por isso que o Oriente entende melhor a nossa verdadeira face, como se ele fora o sudário natural da nossa História. Quando um poeta oriental diz que “não é a flor da cerejeira que é bela mas o momento em que vai murchar”, parece-nos surpreender a mesma desinteressada generosidade da beleza como descoberta, aventura e risco que perpassa pela nossa História e melhor se desvenda quando parece que a nossa presença se desvanece. Quando tudo é História, a recompensa parece continuar a ser sobretudo essa.
Era esta já a lição de Camões, o herói do espírito que o 10 de Junho evoca e comemora. Uma lição que não foi apenas a de pensar e escrever em português, mas a do viver em português. Porque, de facto, a cultura portuguesa é, sobretudo, uma cultura da vida, uma cultura da experiência, uma cultura do humano e da experiência humana. A grande obra cultural portuguesa é de um certo tipo de sociedade e a de um certo modo de viver. Melhor o compreendemos hoje forçosamente quando o nosso império são “Os Lusíadas”, um livro afinal, ou, por extensão, uma História e uma Cultura de que os homens são quem resta e assegura o futuro. Hoje, pelo menos, podemos sem nenhuma afectação política, defensiva ou ofensiva. ser por inteiro senhores do Império dessa Cultura e dessa História, ambas, como “Os Lusíadas”, ao mesmo tempo viagem de um povo e viagem de todo o conhecimento humano. (...)
Nós perseguimos como sempre o nosso rasgo de universalismo, o único capaz de nos transportar e para o qual qualquer europeísmo fechado ou incondicional, ainda que integrado, não seria senão uma espécie, ainda que rica, de provincianismo! Mesmo na Europa não podemos ser apenas europeus. Só olhando ecumenicamente nos não tornaremos cegos. O problema, por isso, não é tanto o de nos adaptarmos à Europa, mas o de entrar nela originalmente, isto é, à nossa maneira e com o lastro de universalidade que trazemos. (...)
É claro que o rasgo de universalismo já não aspira a descobrir ou conquistar as terras e os mares, mas sobretudo ao movimento solidário das culturas e ideias, nomeadamente no quadro de uma língua como a nossa. Somos uma cultura europeia, mas, ao mesmo tempo, transeuropeia e só como tal nos podemos incorporar com autonomia na história do tempo presente e, inclusivamente, na história da própria Europa. A nossa língua torna-nos imediatamente transparente uma grande parte do mundo em toda a parte e é sintomático que o que tenha ficado das nossas relações com os novos países independentes de língua portuguesa seja sobretudo um meio de entendimento.
Trocámos justamente um Império por uma ideia mais generosa na vida em comum, tanto na vida interna como na internacional. Mas foi mais uma conversão do que uma troca. Agora a ideia do Império deve converter-se no Império da Ideia, isto é, num país que possa pensar-se e realizar-se a si e à sua história com um sentido idêntico e fecundo, mas na nova história do Futuro. Agora na perspectiva do ser português e não só na de ter Portugal! (...)


(artigo no Diário de Notícias, 20 de junho de 1982)

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Sob o túnel da Alma

Como falar de futebol no dia em que se consuma aquilo que Edgar Morin chamou a primeira “teletragédia planetária”? Sob o rasto apagado das ideologias, escrevia Eduardo Lourenço, antes da morte de Diana no túnel da Alma, que a telenovela era a única “grande narrativa” dos novos tempos. Nessa altura ainda poderíamos pensar, porém, que, além de brejeira, ela se manteria fictícia ou virtual, como, aliás, as anteriores “narrativas” abstractas haviam demonstrado ser, ainda que nalguns casos depois de haverem cruamente devastado meia humanidade.
Agora, depois da morte de Diana, sabe-se que a telenovela é real, pode mesmo ser realmente trágica e está a caminho de fazer história – a mesma sob a qual as “narrativas abstractas” já perderam todas as ilusões. Nestas ocasiões, a vida suspende-se e não admira que, em Inglaterra, o futebol tenha sido adiado. Afinal, o jogo – desportivo, político ou outro – não funciona durante as emoções colectivas ou as revoluções.
A Inglaterra é o país que inventou o futebol e lhe conferiu a aura de desporto do povo. Apesar do estatuto sagrado que daí lhe adveio e que, em princípio, tornaria intocáveis as suas sessões de culto, não lhe poderia passar ao lado a morte da “princesa do povo”, o mesmo (povo) de que também ele (futebol) se tornou espelho. Um minuto de recolhimento só não chega para o silêncio que precede as grandes passagens.
A Imprensa desportiva resistiu ao assunto, é verdade. Eu, porém, à cautela, não. Este tipo de acontecimentos, qual nova “bomba” da sociedade mediática – que, paradoxalmente, é a do total imediatismo –, pode espalhar mais tumultos do que se julga. Pelo menos, tal como as antigas revoluções, levanta a tampa da panela e separa os campos. Desta vez, a tensão é entre a monarquia mediática e a pré-mediática, a do povo e a da aristocracia, mas também é, antes disso, entre a vida privada e os novos poderes da informação – questões que, como as revolucionárias, concernem, ao mesmo tempo e muito profundamente, a instituições e indivíduos. Sob o túnel da Alma será ainda, inevitavelmente, sobretudo uma revolução de consciência.
Entre “paparazzi” e celebridades há, pois, mais do que o acidental. A fotografia é, neste caso, uma revelação muito maior do que a do 6x4. Há já imagens de pelourinho e de cadafalso, para os caricaturistas se vingarem a descrever a situação dos caçadores de fotos, enquanto – também por cá – alguns dos mais despudorados mandaretes do “tiro” jornalístico aproveitam para aparecer na veste de piedosas carpideiras.
Claro que, como é habitual nestas andanças públicas de cena, outras hipocrisias espreitavam. No dia seguinte ao acidente sob o túnel com o sintomático nome de Alma, os tablóides ainda esgotavam. Quanto mais suspeitos mais vendáveis, parecia a lição. Claro que um “dealer” não deixa de ser criminoso por crescer o número dos seus clientes. Ainda não há ratificação democrática dos delitos ou, se se preferir, a sua legitimação pelo mercado.
Mas, afinal, fora o copo do condutor que extravasara! Os pratos da balança ficavam mais equilibrados, mas a nova tensão não ficava mais aliviada. Ainda por cima, ela aparecia entre os caçadores da imagem mais efémera e a instituição (monárquica) suposta ser a da continuidade e resistência aos tempos. No meio, uma “rainha do povo” e princesa dos corações, também ex-mulher de príncipe e namorada de milionário, parecia reunir o mundo todo. Que espaço é que restava para o futebol?
Resta-me desejar que a selecção nacional vença os alemães, se necessário em nome da aliança inglesa, e que Artur Jorge não comece no muro de Berlim o seu “túnel da alma”...

(crónica n'O Jogo, 6 setembro 1997)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Debates Parlamentares: No 1º Aniversário da Constituição (parte II)

c) Em terceiro lugar, nota-se que a Constituição tem uma espécie de reserva mental e está obsessivamente voltada contra o passado e contra o inimigo, assim diluindo involuntariamente objectivos estratégicos próprios e positivos. Aliás, uma certa parte da frustração da praxis constitucional, sobretudo em sede de defesa da Constituição, resulta de certos órgãos e funções estarem pensados para um "inimigo de direita" quando, afinal, foi o Partido Socialista que veio a fixar-se eleitoralmente no poder. Imagina-se o vazio que daqui resulta para certos mecanismos cuja justificação existencial era o combate às quintas colunas de direita!
Quanto ao passado, por mais que se diga é irreversível. Raramente houve um fosso tão grande – e esse fosso é todo o mar a separar o passado e o presente português. Podemos não encontrar o futuro, mas de certeza que não reencontraremos o passado. A persistência na perspectiva da negação só pode adiar a necessária reidentificação de Portugal consigo próprio.
d) Em quarto lugar, a Constituição estava dominada por um problema político e colocada até dentro do próprio vulcão que grava esse problema político. Desceu mesmo ao escrúpulo de delinear projectos políticos de Governo. Era um problema político de paz que estava em causa, quando o problema essencial é, hoje em dia, um problema económico de arranque e desenvolvimento.
Na verdade, não serve de nada fechar os olhos: continuamos economicamente na senda do desastre. O caminho que a ele conduz não foi ainda invertido, embora tendo sido porventura atenuado ou corrigido!
Isto deve ser motivo para nos interrogarmos frente à própria constituição económica: Não é verdade que o objectivo principal da produção deve hoje sobrelevar o da distribuição? Não é verdade que, ante a falência do Estado plantador, produtor e distribuidor, isto é, superpatrão, se deve iniciar o fim da repressão e do bloqueio à iniciativa privada? Não é verdade que a liberalização económica externa no quadro da CEE arrastará uma inevitável liberalização económica interna? Não é verdade que as empresas devem tear uma constituição interna menos ambígua e menos dilacerada e uma maior capacidade de decisão e de operacionalidade prática? Não é verdade que temos de superar o complexo de uma pequena e média constituição económica, em nome do levantamento da economia portuguesa e da "grandeza" material da colectividade?
Por último: não deverão ser, agora, as necessidades de produção a condicionar as estruturas e a ideologia da economia e não vice-versa? Ou será que se julga suficiente para inverter o curso dos resultados, outra política económica que não tout-court uma outra economia?
Tem de se pensar que, se vencer a riqueza foi uma prova difícil desta Revolução, vencer a pobreza será, porém, o seu exame final.
e) Em quinto lugar, esta Constituição é ainda demasiado coriácea, ou, se se quiser, insuficientemente "horácia".
No fundo, desde logo, este carácter resulta de uma certa noção ainda épica da história. (...) Mas é evidente que o horizonte realista da política do Governo é o anónimo enterro desse mesmo estilo épico. E é indubitável que o processo de "democratização" extinguirá as últimas vanguardas e os últimos resíduos da legitimidade não constitucional, ao mesmo tempo que transferirá para os tribunais as funções de jurisdição e arbitragem constitucional.
O próprio Presidente da República é, porventura, considerado constitucionalmente, em certa medida, como sendo também um órgão interno das forças armadas e será, até por isso, que talvez lhe faltem alguns decisivos poderes de acção e intervenção no domínio político civil.
f) Em sexto lugar, assinale-se a complexidade e a transitoriedade comummente reconhecidas da Constituição e que, por si só, justificam a necessidade de uma sua interpretação dinâmica e actualista.
Por exemplo: a Constituição é tão pluralista, quanto à organização política e administrativa, mas tão monista quanto ao conteúdo ideológico, que já foi tratada como uma "monogamia pluralista". Esta contraditória amplitude de objectivos, que inclui, ao lado da ternura pelo indivíduo, a paixão pelo socialismo, é de algum modo desculpável no meio do dilúvio português. Tratava-se de salvar tudo numa espécie de Arca de Noé. Pode, aliás, ver-se aí também o generoso impulso de abraçar de uma vez todo o mundo e todo o futuro.
Hoje, o dilúvio, porém, passou e somos cada vez menos centro do mundo.
A persistência desta complexidade e desta transitoriedade da Constituição constituem assim um verdadeiro engarrafamento político e económico, tanto mais desesperante quanto mais a crise cavalga. (...)
A esperança, porém, é que, apesar de tudo, o conteúdo socialista, já de si indefinido, tende a auto-reprovar-se economicamente e a esbater-se politicamente cada vez mais, e que, ao mesmo tempo, a forma democrática da Constituição, essa sim objectiva, cada dia mais conta como decisivo e mais eficaz princípio constitucional. (...) Constata-se, pois, que a Constituição, enquanto projecto global da sociedade e do Estado no nosso país, se reinterpreta constantemente. Não há nada de ilícito ou de antijurídico em admitir isto! A Constituição é originariamente um contrato. Só em termos marxistas, ou em geral de poder absoluto, a poderíamos considerar um estatuto. E um contrato é um processo multilateral e dinâmico. A Constituição não é a superiora da democracia, é, sim, um meio serviçal da democracia. De outro modo estaríamos apenas perante mais uma barricada: a barricada institucional.
Manifestações de desagrado do PS e do PCP.
Só são incompreensíveis e contraproducentes neste contexto evolucionista o rigidismo e a pretensão de inalterabilidade da Constituição, por um lado, e a concepção dos órgãos de controlo da constitucionalidade como órgãos de repetição da Constituição e defesa militar do status quo, em vez de como órgãos de actualização e regulação político-constitucional.
Manifestações de desagrado do PS e do PCP.
Quanto ao rigidismo do poder de revisão, dá a ideia que a Constituinte teve ciúmes de que o poder de revisão futuro tivesse mais força conformadora do futuro do que a força conformadora que ela própria teve perante a Revolução. Quanto à concepção dos órgãos de controlo como repetidores da Constituição, dir-se-ia que este sistema de garantia valoriza mais a memória do que a inteligência ou a sensibilidade políticas! E tudo isto inspira, afinal, mais a autoridade da força do que a da competência, mais a conservação do que o progresso. Apesar de se saber que aquilo que a autoridade hoje precisa em Portugal não é de rigidez, mas dessa virtude, só aparentemente próxima, que é a concentração.
No mundo de hoje, os problemas, mesmo os políticos, são sempre novos e a razão só se esclarece e perfila claramente perante os problemas. Por isso, é preciso deixar-lhe sempre, à razão, uma grande porta aberta. Cada vez mais, de resto, decidir é, em democracia, decidir com o povo e não apenas em nome do povo. A Constituição, ela própria, não é um rochedo, é também um barco, um barco maior, é certo, mas que não é insensível nem às ondas nem ao vento.
Já se compreende porque é que o CDS votou contra o projecto global da Constituição.
Risos.
Deixou-se compreender também porque, apesar da modificação tácita do espírito constitucional, voltaríamos hoje a votar contra o mesmo projecto constitucional. Não foi contra a Constituição que votámos, aliás, como se tem dito, foi, sim, apenas contra um projecto de Constituição, que só depois de votado poderia ter validade e existir. Consideramos até que o nosso não foi, aliás, de algum modo referendado pela sociedade portuguesa.
Risos.
O socialismo constitucional, apesar de querer ser mais sociedade, não uniu mais a nossa sociedade, mas, pelo contrário, dividiu-a mais.
A mesma sociedade pensa e procura hoje tanto mais a escola e a economia privada quanto mais se acentua a falência dos modelos de economia e de escolas públicas. O nosso não evitou, aliás, que a aprovação da Constituição de 1976 tivesse tido o estilo plebiscitário, embora agora de via reduzida, que revestira a da aprovação da Constituição de 1933. Ao votar não, o CDS foi, além disso, o intérprete de grande parte de uma sociedade, que nós, com o nosso voto, não quisemos deixar democraticamente desamparada e fora da luta pela Constituição democrática de Portugal. A função das Assembleias é, há-de ser, ecoar perante o Estado as preocupações da sociedade e não agir apenas em função da razão do Estado e do equilíbrio do Poder.
Também por isto o CDS não anda com a Constituição às costas! Cumpre-a integralmente, isso sim! O direito que emana num contrato-social-democrático e livre tem para nós o valor supremo e incondicional. Mas por isso mesmo, porque é o contrato-social originário e fundamental, a Constituição tem de ser assumida em consciência por todos os portugueses neste sentido. Que para nós essa consciência é uma consciência preocupada e crítica, que procurará aliás influir activamente no sentido de uma interpretação anti-restritiva e antidogmática da Constituição.
Queríamos desta maneira contribuir para desafogar o nosso horizonte colectivo, para evitar a sufocação ideologista ou o afunilamento metodológico da vida democrática portuguesa e da nossa História moderna, para possibilitar a final redefinição de um projecto político maioritário e concreto, para alargar a possibilidade de acção política e de iniciativa e enriquecimento económico nacionais. Queremos aproximar-nos mais do sentido da História num espaço político e economicamente liberto, como o europeu, e num tempo que, como o do espírito de Helsínquia, será também o do Livre-cambismo ideológico e do intercâmbio ilimitado entre todos os homens.
Não podíamos, aliás, partilhar a ilusão de que um qualquer absolutismo constitucional, tão tentacular como um polvo, resolvesse, por si só, os problemas políticos e económicos fundamentais. É que, diria para terminar, também em política, a salvação não virá só pela palavra, mesmo que seja a da Constituição. A salvação só chegará pelas obras...
Tenho dito.
Aplausos da CDS e protestos do PS e do PCP, bem como de alguns Deputados constituintes.
O Sr. Cunha Simões (CDS): - Marxistas complexados!

(4 de Abril 1977, Diário da Assembleia da República n.º 95, p. 3109 a 3213)

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Mitos, mística e místicos

A tensão no futebol parece grande mas se pudéssemos reduzir os conflitos da sociedade ou da política a um desafio de futebol – mesmo a um campeonato inteiro – ver-se-ia quanto se exagera a esse respeito.
Não sei também quantos desesperos aliviou o jogo de boxe entre Tyson e Holyfield. Mas sei que serão ainda mais os que serão digeridos pela colossal expectativa de uma desforra entre ambos. Em ambos os casos, a libertação de energia colectiva será provavelmente maior que a provocada pelo duelo Clinton-Dole, o que, aliás, tem o mérito de revitalizar a política. A mística no desporto facilita a racionalidade na política.
Ao contrário, a crise do Benfica é uma fonte de apatia considerável. Julgo que, descontando algum exagero clubístico, é uma das causas da crise no futebol português. No fim de contas é o clube com mais de metade dos adeptos do país – dir-se-ia o clube da maioria absoluta. A liderança é dedicada e laboriosa. Só que o clube flutua mas não anda. Ora esse é o terreno onde os pés se costumam atolar.
Agora sobe-se a aposta: liderar a luta pela limpeza no futebol e ganhar o campeonato contra tudo e contra todos. Imagine-se que sentimento colectivo (nacional?) de empolgamento nos restituíram as noites cheias da Luz! Receia-se é que falte o elemento mítico que o boxe exacerba e que parece constituir o “suplemento de alma” que faz a diferença no mundo da ultracompetição (a “alta” já foi ultrapassada).
É verdade que o grande perigo de um Estádio cheio é esquecer as dívidas. O factor “místico” no futebol é referido no feminino como “mística”, como se se tratasse de uma deusa pagã, vinda directamente da antiguidade, de um daqueles estádios onde se inventaram as competições. No entanto, tal factor também pode ser favorável às finanças.
Não sei, por isso, se é bom tratar das finanças desmistificando, como faz José Roquette, financeiro de golpe de asa e desportista de linhagem familiar. De certo modo, o futebol é um garrafal xarope antidepressivo, uma mezinha de saúde pública popular. Ora, um tónico da alma não se avia nos bancos, embora possa encher as contas bancárias dos clubes e dos jogadores, se estiver a ser eficaz. Tem afinal de lidar com uma espécie de doença psico-social, a que, de resto, não é ele próprio imune e é, por isso, que o “desportivamente correcto” funciona ainda menos que o “politicamente correcto”.
Percebe-se melhor assim que Pinto da Costa tenha explicado o seu sucesso como “paixão”. Esta nem sequer é a melhor receita para os longos matrimónios. Mas foi por essa via que Pinto da Costa se tornou o dirigente mais “mítico” do futebol português e, apesar disso, o que criou melhores condições para enfrentar a questão financeira.
Fernanda Ribeiro já foi a pé a Fátima e Holyfield diz que conseguiu esmurrar Tyson pela força da graça de Deus. Algures há mais forças que as humanas para ganhar a outros seres humanos. E o desconhecido é ainda a mais prosaica revelação da linha do infinito, apesar de ele próprio ter um campo de acção cada vez mais estreito. É disso que, por essa ou outra via, precisa o esforço concentrado e contínuo da vitória: uma ajuda “mística” e de “mitos”.

(Crónica semanal no Jornal “O Jogo”, 27 de Setembro de 1997)

terça-feira, 27 de maio de 2008

Debates Parlamentares: No 1º Aniversário da Constituição (parte I)



O Sr. Lucas Pires (CDS): - Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Primeiro-Ministro, Srs. Ministros, Srs. Conselheiros, Srs. Juízes do Supremo Tribunal de Justiça e da Comissão Constitucional, Srs. Constituintes, Sr. Cardeal Patriarca, Srs. Deputados: Há um ano, uma nova Constituição política encerrava, entre nós, um período revolucionário perturbado e abria o caminho à liberdade e à esperança de todos os portugueses num futuro consciente, ordenado e pacífico - tal como para os cristãos, no lance que separa o Velho Testamento do Novo Testamento.
É esta Constituição-menina que tão mal passara no ventre da mãe e que a ferros o 25 de Novembro ajudara a sair, que hoje tem, sem dúvida, pelas dificuldades do próprio parto, o direito a comemorar o seu primeiro aniversário.
Não se trata, evidentemente, de lhe erguer uma estátua! Até porque seria lastimável acrescentar a todo o rigidismo com que a criança foi vestida, jurídica e ideologicamente, a goma que as atitudes laudatórias sempre transportam. Do que se trata é de festejar a mística constitucional que o seu simples nome de baptismo - Constituição - já envolve e que foi um primeiro sinal de convergência das forças democráticas contra a mística revolucionária das forças totalitárias.
É por essa unidade das forças democráticas na intenção de dar uma Constituição democrática a Portugal que o CDS, em primeiro lugar, se associa a esta comemoração. E associa-se assinalando que a considera, não só uma evocação, mas também um aviso a todos os inimigos da soberania do direito e da Constituição que agitam e promovem a tirania dos governos de partido, dos governos de facto, dos governos de um indivíduo ou dos governos de uma casta.
Infelizmente, o chamado «processo revolucionário» viria a descobrir formas de assegurar a sua continuidade para além da entrada em vigor de Constituição. É uma atitude que, de resto, explora utilmente o facto de a Constituição ser, em grande parte, «o espelho mágico» da Revolução, através do qual, como nas histórias infantis, se quis fazer bonitas as coisas feias... A Constituição veio entre nós depois da Revolução, ao contrário, por exemplo, do que aconteceu em Espanha. O direito veio depois dos factos e não pôde, assim, constituir a própria substância originária da revolução democrática.
Por isso, a Constituição reflecte a luz mas não ilumina. É como o produto de uma inteligência abúlica ou estupefacta, aliás de certa modo tradicional e dominante entre nós, que descreve, analisa e critica normativamente os factos que a antecederam ou aferiram, mas não está fundada nem anima a inteligência criadora capaz de dirigir, seleccionar e transformar os factos que lhe sucedem. É daí que resultam tendências, quer para a desorganização quer para a anomalia, que têm na vida corrente portuguesa as traduções que todos conhecemos.
A razão que nesta Constituição fala é, por tudo isto, uma razão impura, como que incarnada num mitológico bicho de sete cabeças. Não é, por outras palavras, a razão pura, a que é, no sentido liberal e democrático, a razão de todas as razões e não só a razão de algumas razões, como foi a razão revolucionária, aliás estropiada e privatizada. É assim que esta Constituição foi transformada numa parte, e continua a haver quem a queira transformar por inteiro na Constituição fêmea de uma revolução macho.
Não é de estranhar neste contexto que o "inimigo principal" da mística constitucional e do poder da Constituinte, como órgão supremo da Revolução, venha depois, depois do 25 de Novembro, depois da própria Constituição aprovada, considerar esta Constituição como o processo revolucionário apenas provisoriamente congelado, isto é, como o patamar de eventuais avanços revolucionários e como a área-tampão contra desenvolvimentos futuros de sentido mais democratizante e mais liberalizador. Não é de estranhar que esses mesmos hoje apareçam a brandir a Constituição, ora como um "livrinho vermelho" lusitano, ora como um velho fantasma regressado para dissuadir projectos europeístas e conquistas liberais.
A curiosa metamorfose é esta: aqueles que eram e são partidários do mais completo positivismo político, aqueles para quem até a liberdade e a igualdade são apenas meios do seu próprio poder, esses são, hoje, os mais lampeiros arautos do positivismo jurídico e do integrismo fetichista da letra constitucional.
Não é por acaso que, hoje, os que haviam sido mais revolucionários que a Revolução se façam de mais constitucionalistas que a Constituição. Não é por acaso que partidários extremos da revolução acabam por querer afinal que a Revolução esteja para trás de nós. Não é de estranhar! Pelo contrário: é uma atitude muito elucidativa! É que, ao defender à outrance a Constituição como um museu de factos normalizados, estão essas forças a supor implicitamente que, do ponto de vista maioritário, a Constituição do actual futuro português deveria ser outra pois que, afinal, essa escolha do revoluto embalsamada é uma rejeição da liberdade constituinte futura do povo português! Mais: não pressentirão essas forças que a Constituição Portuguesa é hoje já ideal e realmente outra que não a mesma, pelo menos mais crescida no seu dinamismo, na sua vocação, e no seu espírito?
Senão, vejamos:
a) Em primeiro lugar, a Constituição tem ainda muito de apropriação exclusivista da Revolução, que separava abruptamente os vanguardistas e as maiorias, os classistas e os anticlassistas, a esquerda e a direita, e até o sector público e o sector privado, discriminando, permanentemente, a favor dos primeiros contra os últimos. O funcionamento dos mecanismos eleitorais permitiu, é certo, que a Constituição se tornasse mais integração do que exclusão. Mas tal integração refere-se mais, ainda, às pessoas do que às ideias e aos bens sociais e, mesmo em relação às pessoas, só por via eleitoral tal integração tem obtido realização. É, assim, indispensável caminhar no sentido de considerar a Constituição como instrumento de integração de todos os valores, bens e pessoas portuguesas, e não como instrumento de exclusão de umas contra as outras.
É que a história moderna não passa o tempo a olhar para a direita e para a esquerda. Não é de lado que tem os seus limites. Os seus limites estão atrás e à frente, no passado e no futuro, porque resultam de uma integração ou exclusão, sim, mas no ritmo da história europeia a que pertencemos! É à frente que se vencem as margens e não é, pois, à beira destas que é preciso estar em guarda!
b) Em segundo lugar, a Constituição coloca-se mais na perspectiva da ideologia do que na da acção. Oriunda de uma "Santa Trindade" socialista, com o seu pai, o seu filho e o seu espírito santo...
Risos.
...está inquinada por um "complexo de esquerda" que nela funciona como peso, em vez de, como alavanca de libertação. Na fase revolucionária a que corresponde, o fenómeno é, em si, explicável. Da facto, o marxismo é a mais simples e a mais positivista das resposta para a insegurança que o subdesenvolvimento cultural sente perante o mundo moderno. A entrada súbita e revolucionária neste ciclo histórico inclinou, assim, algumas forças – nem todas marxistas – à procura fácil do protectorado ideológico e provisório do marxismo.
Hoje, não só esta situação de insegurança política radical está ultrapassada, como, além disso, a primazia do viver e do pensar sobre o pensamento e a dogmática começam a ser patentes. Temos quase meio milhão de desempregados e uma impossibilidade manifesta de executar a parte mais generosa da Constituição – a que a todos reconhece o direito ao trabalho! As condições de vida degradam constantemente o estado de cumprimento de todos os direitos sociais da Constituição. E é caso para dizer, ao fim de mais de dois anos de ideologia socialista, que é finalmente tempo de pensar a sério nos pobres... (continua)

(4 de Abril de 1977, in Diário da Assembleia da República n.º 95, p. 3109 a 3213)

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Do socialismo em liberdade à democracia em liberdade


O discurso e as propostas do Partido Socialista não têm trazido muitas novidades, apesar, aliás, dos inúmeros “empréstimos” de que as suas actividades sempre se socorrem. Dir-se-ia até que as suas proclamações mais novas são, afinal, as suas proclamações mais velhas. Constituem, de facto, novidades, mas apenas no sentido de repescarem algumas antiguidades, as afirmações de que a revisão constitucional deve insistir na manutenção da “transição para o socialismo” ou de que os partidos da AD incarnam “o anti-regime”.
Para além de se tornar evidente nesta linguagem que a “Frente” não avança mas recua, constatam-se desde logo em tais afirmações duas originalidades, cujas contradições internas, por chocantes, as tornam ridículas. Por um lado, deve ser a primeira vez que uma Oposição democrática se nomeia Regime e acusa o Governo e a Maioria Democrática de anti-regime, arrogando-se o exclusivo na interpretação de uma ortodoxia oficial.
Por outro lado, deve ser também a primeira vez que uma transição se torna contínua. Perguntar-se-ia, aliás com legitimidade, como é que a transição continua se o PS pretende, justamente, manter tudo, quanto possível, mais ou menos na mesma. Transição para qual outro socialismo se o PS se parece identificar maximalisticamente com o desta Constituição? Retendo apenas o substantivo transição, não será até a ideia de mudança veiculada pela AD que mais se parece com esse potencial dinamismo e é pois mais regime no modo, embora não no objectivo?
A verdade é que, apesar de risíveis de um ponto de vista lógico, as fórmulas citadas, na boca do PS, não podem ser consideradas como inocentes ou descuidadas facilidades linguísticas. Mesmo que tenha a memória curta, como é próprio de toda a política conjunturalista ou eleitoralista, o PS recordar-se-á com certeza de ter sofrido as consequências de fórmulas idênticas. Regime e anti-regime traduzem um tipo de bipolarização que pertence ao glossário do antigo regime e, mais do que isso, ao de todos os regimes cuja vocação é de excluir autoritariamente em vez de compreender democraticamente. A “transição contínua” é, por sua vez, uma fórmula que julgo não ser senão uma versão benigna da arcaica moléstia da “revolução contínua”. Na transição para o socialismo, como na transição para o corporativismo, há o mesmo investimento onírico, o mesmo desperdício de energia e realismo, a mesma alienação inútil e exploradora. E a mesma ideia de transição que, nos dois casos, transforma a Constituição de quadro estável de garantias, regras e direitos, em movimento aleatório e dirigido, quem sabe se por uma desconhecida longa manus.
Mais detalhadamente, parecem vislumbrar-se nas fórmulas citadas pelos epígonos socialistas três pretensiosas ideias fixas. Primeiro, a de que o regime (em transição) deve continuar a ser provisório, balanceado e submisso, qual caminhante de alpergata que aguarda a famosa luz do fim do túnel. Segundo, a de que a fronteira do regime é o socialismo e não a democracia, havendo, portanto, uma espécie de ostracismo constitucional ou exílio interno para os que não sejam socialistas, aos quais é dispensada a liberdade suficiente até para ganhar as eleições, desde que só administrem o Estado, sem o governar, sem se porem contra o socialismo e a favor de um projecto alternativo, sendo a sua vitória apenas tolerada e servindo apenas de canapé ao momentâneo repouso do “guerreiro” socialista ou de intermitente ventilação à sua obra. A terceira ideia fixa dos socialistas portugueses seria a de que o PS seria o morgado do regime, o partido maioral, mesmo quando não fosse o maior, o partido institucional, ainda que larvar, o testamenteiro ou até o legatário do constituinte, o seu único filho legítimo, o interruptor, o fio e a lâmpada por onde se fará a tal luz por vir, ainda que o PCP lhe dispute, muitas vezes, tal legitimidade e insinue que, em termos de devir ou transição futura, o PS poderá ser relegado para uma posição de bastardia, para o que invoca até essa luz maior e ofuscante que seria a de “um sol de terra”...
Pelos vistos, será mesmo neste contexto que deve ser entendida a expressão “socialismo em liberdade”. A liberdade do socialismo seria a única completa e maiúscula. Essa seria a ideologia do regime, mesmo quando não chegasse eleitoralmente, como aconteceu a seguir a 2 de Dezembro, para ser a modesta ideologia do Governo. Também aqui a “teologia” resistiria ao pecado e mesmo à heresia prática. Só o socialismo persistiria, pois, como ideologia constitucional ainda que tolerante e mesmo permissiva. As outras ideologias seriam apenas a-constitucionais, embora faltassem as condições e , nomeadamente, o quadro político externo, que permitiria considerá-las inconstitucionais. (...)
Assim, se o PS não é ainda o partido único, a verdade é que diz que se a unidade se não faz à sua volta, então é ilegítima! Isto é uma monarquia “ideológica” liberal mas é ainda uma monarquia ideológica. Não é o partido único mas é o partido-mestre, intercalar entre o único e o vário, entre o socialismo e “o resto”, meio-único, mexicano ou institucional, sucedâneo do único – e também, nesta versão, afinal, intermediário ou intercessor, junto do mais único de todos os partidos, aquele que já é mais do que um partido, quando os outros ainda o não são bem, o Partido Comunista. É como uma escadaria, em suma.
Há aqui uma lógica de patrimonialismo ideológico que tem, aliás, a Constituição pelo seu lado. E porque não haveria de ser assim se a Constituição também está do lado do PS? Para um partido, ainda por cima sentimental, é indispensável que o amor com amor se pague. A Constituição, de facto, permite ao PS repousar sobre a predestinação a que ela o vota. A Constituição é, de facto, garante do poder ideológico, pelo menos garante de uma certa confessionalidade laica do Estado, tanto ou mais do que garante da liberdade. Demasiado fechada à volta de uma ideologia e de algumas organizações, a Constituição hesita demasiado entre o CR e o Povo, entre o “poder” popular e o poder eleitoral, entre os militantes socialistas e os votantes de todos os partidos. (...)
A Constituição é pois uma escritura da nova propriedade socialista do regime. (...) Numa visão mais pessimista, dir-se-ia, até, estarmos perante um esboço de “Estado Novo Socialista”, uma nova Democracia Orgânica, agora Socialista. Chega a poder imaginar-se que tudo se teria, afinal, passado como se o marcelismo tivesse podido finalmente, embora por interposta acção, avançar até à democracia ou ao sufrágio universal, como inicialmente, aliás, estava previsto, ao mesmo tempo que se convertia ou progredia para o socialismo, sendo certo que, como diz algures Eduardo Lourenço, “o corporativismo já comporta algum elemento socializante”. A hipótese é tão abstracta quanto macabra mas explicaria que, em termos de propriedade do regime, a nossa esquerda se comporte mais como a herdeira ou sucessora do antigo regime do que como a sua negação ou contradição. São categorias mentais idênticas que se reproduzem através das consciências e persistem tanto mais facilmente quanto se podem desculpar com o facto de ter havido uma revolução e até de serem os aludidos “herdeiros” quem parece tê-la feito e disputado em tumultuosas partilhas. Daí o regresso do “anti-regime” e da “transição que continua”.
O esquema aludido é terrificante do ponto de vista teórico, sobretudo quando pensamos que as referidas fórmulas do PS poderiam ser desculpáveis há quatro anos, na altura em que os chefes socialistas eram apenas o eco ou até o “microfone” das massas, mas hoje são uma entranhada e deliberada convicção dos seus autores. Terrificantes poderiam, ainda, parecer tais fórmulas por sugerirem uma reincidência ou uma recaída – fórmula que parece mais adequada dado o carácter “doentio” da lógica que lhes está subjacente. Na realidade, porém, julgo que a “suficiência” socialista é bem mais uma forma de “impotência”. Mesmo aquilo que nessa atitude há de antigo regime representa a fraqueza psicológica de um “enquistamento” ou de uma “transferência”, devidas ao enfrentamento prolongado e duro que com esse mesmo antigo regime tiveram de suportar. (...) É, também, por não ter projecto próprio e vivo que o PS precisa do da Constituição e da bênção que esta derrama sobre ele como partido ungido. (...)


(artigo no Diário de Notícias, 10 de setembro 1980)

sábado, 10 de maio de 2008

9 de Maio: dia santo ou revolucionário?


O 9 de Maio – dia da Europa – devia ser comemorado como uma revolução. Evoca a declaração de Schumann (um católico centrista, tipo santo revolucionário) na base de uma proposta de Monnet (o primeiro “gestor” moderno de conflitos interestaduais) que foi o “abre-te, sésamo” para o fim das guerras – e das revoluções! – na Europa ocidental. O carácter “último” desta revolução explicar-se-ia por, através dela, o homem comum, género consumidor sem fronteiras, ter começado a tomar o poder para lá da soberania e dos Estados.
Quarenta anos depois, a questão é, porém, a inversa. É a de saber como sair do quietismo conformista e mesmo alienador em que aquela revolução caiu. Por dentro, ela claudica quando o homem da rua, velha carne para canhão das guerras continentais, volta a sentir-se súbdito, agora de uma burocracia abstracta e longínqua (Bruxelas), em vez de ver prosseguido o processo emancipatório da cidadania europeia, até à plena consciência e domínio político do novo espaço.
Por fora, a evolução europeia vê-se ameaçada pelo “blitz” da globalização que ameaça reduzir a Europa a um “clone” da América, liquidando o seu ex-líbris – modelo social europeu – perante a impotência da sua outra glória – o Estado nacional – que, no entanto, resiste a partilhar poderes que já não pode exercer.
Claro que o balanço fora positivo. Não chega para estabelecer a paz na Jugoslávia ou a ordem na Albânia? Sim, mas também não deixou degenerar essas guerras civis em guerras europeias, como acontecera antes. Até evidenciou, por contraste, que tais “colapsos” só não ocorrem no seu perímetro, mesmo em países onde a crise e a desconfiança no Estado conheceram vertigens abissais, como na Bélgica ou na Itália.
Talvez por isso os países de Leste se esgadanham para entrar na UE. Os albaneses, perante o sumiço do Estado, lançam-se à água, na direcção do regaço pós-moderno das unidades políticas mais prevenidas. Como se o problema já não fosse guerras intra-europeias mas a pressão da mundialização. Nem fossem as erupções revolucionárias, mas o colapso dos poderes soberanos.
Claro que a moeda única também está à vista. Bastará ao tal homem da rua europeu para forjar uma consciência e um interesse comuns, daqueles que, além de portáteis, omnipresentes e gerais, não enganam. Gerará ainda uma declaração e contaminação globais, arrastando o sistema comunitário e agudizando a reivindicação da legitimação democrática sobre poderes do mercado e da técnica.
A União Monetária exigirá, assim, conquistas proporcionais em todas as esferas não monetárias ou políticas da UE (PESC e segurança interna). Delas dependerá a sua sustentação e consenso. Ou seja: a moeda única não será só uma conquista financeira. E será também a primeira amarra da irreversibilidade da construção e da sua nova cultura de estabilidade, segurança e durabilidade.
O problema, porém, está em saber se a Conferência Intergovernamental será já a senha para o séc. XXI. Será que, em vez de um Maastricht II, Amesterdão lançará a Construção Europeia II, na passagem à Europa Política e Larga? Será que nos conduzirá da incerteza da pós-modernidade para a linha recta da segunda modernidade?
Já é tarde para acreditar. No plano das opiniões públicas nacionais, a atitude reformista continua manietada entre a direita nostálgica do Estado Nacional e a esquerda situacionista do Estado Providência. Ambos prisioneiros da impotência recíproca! As forças reformistas ainda não são tão fortes que rompam esse bloqueio. No plano comunitário, a opinião pública quase não existe e o mecanismo das decisões fundamentais é do “velho testamento”, quando a profecia bastava. No tempo da guerra fria, os Tratados congelaram e a Europa rodava por si, com o mundo parado à volta. Na última década vamos, porém, na terceira revisão. E tudo indica que não vai chegar, como a máquina a vapor não chegaria para a era pós-industrial.
O método da mudança torna-se mais lento enquanto o mundo vai mais rápido. Até chegar à história do quinto marido de Elizabeth Taylor, que inquirido sobre a lua-de-mel, declarou não prever nada de novo... Afinal, se o barco mal passou o Bojador com 12 como passará as Tormentas com 15? Por essas e por outras se banalizou a ideia de outra CIG à boleia da moeda única.
Já não é mau que todos façam o seu melhor, como Kohl ao anunciar a sua recandidatura. A presidência holandesa, avisada desde Maastricht, faz uma arrebatada “percée” voluntarista e adianta um projecto de Tratado. Chirac antecipa as eleições gerais (Maio-Junho) para assinar o novo Tratado sem tremedeiras de mão, talvez economizando um referendo, como De Gaulle, a outro propósito, em 1968, “et pour cause”... E haverá os jantares de “sandwiches” que Cavaco Silva considerava o “doping” por excelência do último quarto de hora negocial.
Sobretudo novo alento sopraria sobre o Atlântico. Quando o eixo continental (Paris-Bona) esmorece, a esperança volta com o último barco da nova outra margem (Inglaterra)! Embora Blair não se comprometa, o pêndulo é fatal no seu movimento. Nem nenhuma hipótese sobre uma “entente” podia ser pior que a anterior. Ironicamente, augura-se aos trabalhistas o melhor de dois conservadorismos: o de Thatcher na economia e de Edward Heath na política externa, para fazer do seu país uma potência de “governo” e não de “oposição” europeia.
Se assim for, podemos ter um resultado à Acto único Europeu ou até à Maastricht: decepcionante no imediato, mas a eficaz a prazo. Como o filho que dizia que o pai era estúpido mas uma década depois já o achava muito inteligente... A diferença é que já não se pesquisarão as pepitas no filão da eficácia (Acto Único) ou da estabilização monetária (Maastricht), mas no plano simétrico da segurança interna (3º pilar). A democratização política ficará para depois, à espera que os jovens europeus cresçam. Não é, pois, com a actual CIG que chegará a segunda modernidade europeia. E, por este andar, o 9 de Maio passará de revolucionário a dia santo. Pode prosseguir a evolução na continuidade. Afinal a Europa já não é um sonho mas uma necessidade. Só se a CIG não chegar para manter as duas rodas da bicicleta de pé, é natural que muitos se dêem à maçada da ratificação. E outros poderão avançar separadamente, num corredor duplamente revolucionário, para lá de Monnet e Schumann, a caminho de outros métodos e objectivos, os primeiros mais democráticos e os segundos mais políticos. E então, como em todas as revoluções, quem lá não estiver que não se queixe...


(artigo no Expresso, 3 de maio 1997)

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Futebol e Poder Local



O dia 1 de Agosto é a data limite para as decisões sobre o novo regime das sociedades desportivas. Vários problemas subsistem porém a curto prazo além de outros mais permanentes sobre a nova lei. No primeiro plano, o dr. José Manuel Meirim, por exemplo, já defendeu com brio a inconstitucionalidade das regras sobre a responsabilidade dos dirigentes desportivos, tão completamente alheias são elas à noção de culpa. Por outro lado, a Liga pensa que a necessidade de prestação de caução (10% dos respectivos orçamentos) só valeria para a próxima época desportiva, o que, como notou o dr. Fernando Seara, rompe a coerência do dispositivo responsabilizador no seu conjunto. O pós-1 de Agosto está assim entre esvaziamento, adiamento e o aquecimento próprio da época...
Num plano mais geral, eu próprio já tenho chamado a atenção para os problemas estruturais de longo prazo do que, para empregar a expressão do ministro Jorge Coelho a outro propósito, pode ser considerado uma "caldeirada" do clubismo clássico, comunitarismo municipalista e capitalismo populista, numa convivência que não se afigura fácil. Em concreto, um dos riscos principais é o da interpenetração câmaras-clubes, com os deslizes que se imaginam. No limite não estaria excluído que os clubes começassem a apresentar candidatos às câmaras e vice-versa. Sobretudo quando começar a possibilidade de listas de independentes no Poder Local. Até porque os clubes são os principais animadores das sociedades civis locais, e tenderão, face à lei a constituir-se, como os mais poderosos grupos de influência.
A verdade é que já toda a gente percebeu a importância do futebol na vida local. No seu primeiro e prometedor comício como candidato à Câmara Municipal da Figueira da Foz, Santana Lopes anunciou como um dos pontos da sua agenda política — um dos mais destacados pelos jornais — a subida da Naval 1º de Maio à I Divisão. Preveniu ao mesmo tempo que não usará a estratégia que na Madeira recentemente fora contestada para a reorganização do futebol regional. Felizmente, Santana Lopes, cuja simultânea experiência no domínio político e desportivo é difícil de igualar, poderá usar tais mecanismos com perícia. A ideia em si mesma está, porém, à disposição de todos os outros candidatos pelo país fora e é fácil, por exemplo, imaginar o que aconteceria no Porto se Pinto da Costa não tivesse em Fernando Gomes um seu aliado.
É, de resto, para lá dos grandes centros que a utilização política do futebol e a recíproca utilização futebolística das câmaras são mais prováveis. Todos sabem que o futebol é uma das formas de pôr certas terras no mapa, como, aliás, estatísticas e sondagens de vários tipos têm demonstrado, e se torna uma exigência quando a visibilidade é a mais óbvia condição de atractividade em que todos apostam. É por isso que se pode imaginar que, ao lado da dimensão político-jurídica europeia (caso Bosman) e nacional (totonegócio, etc...) o futebol se desenvolverá cada vez mais numa dimensão regional e local que a nova lei vem acicatar. A agenda Santana Lopes pode neste plano ter um sentido bandeirante... E não apenas no sentido oposto. Mas também no de o sul assim querer abrir uma frente ao centro, para melhor se equilibrar a hegemonia desportiva do norte...

(Crónica no jornal "O Jogo" de Sábado, 12 de Julho de 1997)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Escola do Estado ou escola pública?

Sintomático na actual situação política é o facto de a relação entre o Governo e o Parlamento ser difícil ou fácil consoante se trate de questões económico-financeiras ou de questões de outro tipo. Quando se trata da economia, o Governo aparenta ter certezas e aparece disposto ao confronto. Sobre as restantes questões, na maior parte das vezes, o Governo parece ter dúvidas e é ele próprio que se encarrega de organizar, como um “puzzle”, os “velhos” consensos unitários. (...)
Sem dúvida que a valorização do argumento económico era hoje fundamental, para compensar o lastro de um processo revolucionário em que esse argumento só não aparecia subordinado no momento em que era preciso pagar as facturas. Além de que a redução do campo de confrontação política ao argumento económico é possivelmente o preço para a estabilidade de um Governo minoritário. Tudo isto não pode, porém, fazer esquecer que a redução da luta e coerência política à defesa de uma política de estabilização e saneamento económico-financeiro, ou mesmo de crescimento e obtenção de certos objectivos numéricos (uns, aliás, excedidos, outros nem sequer atingidos), não chega para reconverter as estruturas e mentalidades, mesmo só na esfera da produção.
Um projecto que seja, pelo menos, uma política global de desenvolvimento e queira ter um longo prazo não poderá, por exemplo, separar o progresso económico da reforma educativa. Os desafios simultâneos da democratização, da integração europeia, da revolução tecnológica, não só não consentem a consagração legislativa do imobilismo no sector de que mais depende a formação e “acumulação” do novo capital humano para o futuro, como exigem uma perspectiva determinada, nova e coerente da reforma da Educação.
Neste plano, a nossa tradição estatista, centralista e burocrática é, aliás, pesada. Após uma dúzia de anos de revolução democrática, o ensino não estatal continua apenas a representar 10 por cento do total, quando nos restantes países da Europa vale entre 20 e 80 por cento do total. Dir-se-ia que a “Educação Nacional” do antigo regime não fez mais do que ir ampliando cada vez mais as suas estruturas, órgãos e meios financeiros, ao mesmo tempo que ia perdendo o seu sentido e idiossincrasia original, até chegar, por isso mesmo, à extinção total do seu sentido formativo que, nalguns casos mais lamentáveis, chegou a implicar a perda do mínimo sentido de responsabilidade pedagógica.
É perante esta realidade agigantada na forma mas vazia no conteúdo que se pergunta se o que há a fazer é apenas melhorar o sistema educativo ou não será antes reformá-lo. Quem duvida de que é necessário, pelo menos, flexibilizar a oferta de educação para a tornar apta a responder a desafios profissionais cada vez mais diversificados e a projectos culturais cada vez mais autónomos, incapazes de ser respondidos, de uma só vez e igualitariamente, do alto da pirâmide estatal? Quem duvida que é necessário sair dos restos, extensos mas desanimados, do regime da velha “Educação Nacional” (mais próprio de uma sociedade homogénea e fechada) para o regime da “Liberdade de Educação” (mais próprio de uma sociedade pluralista e aberta)? Quem duvida que depois da hora da democratização do ensino chegou também a hora do pluralismo educativo?

A questão não é só de eficácia, qualidade e dinamismo da educação numa sociedade mais aberta, plural e móvel. É, também, a dos limites financeiros do Estado e dos contribuintes e a da justiça relativa entre as famílias. A despesa da educação em Portugal ronda os 3 por cento e anda abaixo de um terço da média dos países da CEE, mas não se vê como é que se pode pedir mais e só a um Estado pobre o necessário crescimento do investimento nesse sector, quando tal investimento tende, aliás, a ser mais capital-intensivo. Em suma: faltam dinheiro, instalações e professores (apesar do numerus clausus), e não se vê como é que os contribuintes ainda estarão dispostos a alargar os cordões à bolsa para uma educação que, aliás, não transforma ou lidera positivamente o processo da mudança social e tecnológica e onde a relação custo-benefício parece ser baixa. Por um lado, a injustiça, os fracassos e as dificuldades de acesso institucionalizam-se. O Ensino Superior Privado é crescentemente procurado, mas as famílias que optam por ele acabam por pagar duas vezes, através dos impostos como que continuam a sustentar o ensino estatal e das propinas com que retribuem o ensino particular por que optaram. Por outro lado, os pobres estão a pagar a educação dos ricos pois estes disfrutam do ensino estatal nas mesmas condições de quase gratuitidade e chegam proporcionalmente em muito maior número aos escalões superiores da pirâmide educativa.
Vamos então deixar quase tudo na mesma? Ou vamos começar por alterar a própria noção de escola e da sua relação com o Estado, desde o projecto educativo até ao estatuto jurídico e modo de financiamento. Não se trata, em suma, apenas de reconhecer ou não o ensino não estatal, com mais ou menos espírito de tolerância, como já o fazia a Constituição e o faz agora a Lei de Bases. O problema é saber se os vários projectos educativos, consubstanciados através da escola, estatal ou privada, não devem ser postos no mesmo pé, com idêntica autonomia jurídica e financeira, idêntica responsabilidade pública e idênticos apoios do Estado. O problema é saber se o Estado, em vez de financiar as escolas, não deve antes financiar os educandos e as suas famílias, segundo as respectivas carências, de modo a evitar gastos com o ensino dos que não precisam dessa ajuda, permitir a todos escolhas mais amplas, valorizar a responsabilidade de docentes e discentes pela gestão dos seus próprios estabelecimentos de ensino e introduzir um salutar espírito de competição inter-escolar que só pode favorecer a qualidade do ensino.
Não se trata, pois, de multiplicar as escolas privadas, mas sim de lançar as bases de um sistema educativo compatível com as condições, a iniciativa e a responsabilidade dos seus vários componentes, agentes e beneficiários. Toda a escola tem de ser, aliás, pública, no sentido de prestar um serviço social e corresponder a exigências de aptidão e qualidade definidas pela lei e controladas pela autoridade democrática, segundo parâmetros comuns, quer se trate de escola de iniciativa privada ou da de iniciativa estatal. Só assim, de resto, a “instrução” poderia voltar a ser “educação”, em vez de mera transmissão mental de conhecimentos, mais próxima, pois, da identidade e dos problemas das comunidades em que se insere e de uma reconstrução humanista de toda a formação escolar. Só assim, também, a escola se aproximaria do processo de renovação técnica da sociedade actual e das suas exigências de constante adaptação e mobilidade, deixando de ser um instrumento para fazer doutores, numa modificação que será indispensável perante o mercado de emprego substancialmente alterado dos anos noventa. Só assim, por último, a escola se tornará verdadeiramente “livre”, como era ontem uma ambição laica, mas hoje é também uma ambição do mundo cristão.
O papel do Estado continuará a ser fundamental, sobretudo num país com as carências do nosso. Mas a sua primeira obrigação é também a de favorecer as condições de libertação e responsabilização das instituições e cidadãos que se movem no seu âmbito. É por isso que seria um grande passo em frente que, ao elaborar-se uma Lei de Bases do Sistema Educativo, ela pudesse desde já fazer-se à estrada com a mira na educação do futuro ou na educação em liberdade.


(artigo no Diário de Notícias, 21 de agosto 1986)

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Revolução e Constituição


(...)

Em todo o trajecto recusou-se uma Constituição que pudesse surgir por via plebiscitária ou referendária – talvez porque à Constituição só se deveria chegar através do próprio “processo” revolucionário. Em comparação com uma democratização como a grega, por exemplo, a “legitimação eleitoral” chegará, entre nós, por sua vez, relativamente tarde, quando os problemas já haviam encontrado soluções consumadas por outras vias. Por outro lado, o processo revolucionário progrediria muito rapidamente pois, entre “consolidar para avançar” ou “avançar para consolidar”, a opção da cúpula político-militar seria a segunda. Em relação a este trajecto, como dirá Miguel Galvão Telles, “da perspectiva do direito do período revolucionário, a Constituição é o seu ponto de chegada”.
Na sequência da mesma demonstração, é também sintomática a verificação de que, em vez de se apresentar, liminar e preferentemente, com uma clara hierarquia das fontes de Direito e ordenação do sistema normativo, ou como cabeça de uma ordem jurídica, a Constituição se revela, sobretudo, como “plano” e “molde” de um “projecto” no sentido político-normativo, também aqui, pois, na linha directa de descendência e extensão da Revolução. De resto, vêm a repassar mesmo o texto constitucional todas as autonomias e formas de participação “libertadas” pela Revolução, a qual fora também uma abertura às revoltas ou sub-revoluções sectoriais e zonais, mesmo àquelas que, numa reordenação coerente do todo, poderiam parecer de problemática compatibilização ou até contraditórias entre si.
É claro que a Revolução sempre operaria como o “ovo” da Constituição, na acepção de que aquela já contém o princípio ou a potência da ordem que nesta última se irá imprimir. Também se sabe, como diz Castanheira Neves, que “a revolução constitui sempre um seu direito e não pode prescindir do direito”, além de que cumpre “uma parte da missão que, em período de estabilidade, pertence à Constituição”. Não se ignora que há mesmo nela algo de recondução de uma “ordem” perdida (...) Mais do que isso, para H. Berman, toda a tradição “legal” do Ocidente nasceu de uma “Revolução” e durante séculos tem, depois, vindo a ser periodicamente interrompida e transformada por revoluções. Mas é evidente que a Constituição se poderia ter emancipado ou, até, rompido com a linearidade formal do processo, embora em perfeita compatibilidade com o auto-desenvolvimento da progressão económica e política da Revolução. Entre nós, ao contrário, não se tratou sequer só de uma adopção textual – ainda que não “recepção” em sentido jurídico – mas, mais do que isso, de um reatamento, síntese e reconstituição da Revolução através da Constituição.
Por outro lado, a Constituição veio não só reproduzir os conflitos da Revolução como quis mesmo representar aquilo que, na sua própria versão originária (n.º 1 do art.º 10.º), ela designara como “desenvolvimento pacífico do processo revolucionário”. (...)
A Constituição viria a corresponder mesmo à continuação da Revolução pela lei. Se não era apenas o seu sudário ou mata-borrão, funcionou, pelo menos, como uma espécie de respectivo “poder de revisão”, mas não só dentro da legalidade formal da Revolução, como de acordo com a continuidade desta e da sua obra. A própria extensão desmesurada da Constituição é um sinal da sua preocupação regulamentar em relação a um Direito que a Revolução já postulou, da mesma maneira que a linguagem algo “barroca” do texto pode ser vista como um eco vicinal da natural estridência ou “febre” revolucionária. (...)
O MFA, afinal, terá agido não apenas como autor da “ideia de Direito” que conforma a Constituição mas, através do conteúdo dos Pactos e demais actos de legalidade revolucionária, como verdadeiro poder constituinte material. (...)
Mas, como Jorge Miranda salienta, mais graves eram ainda “as limitações estabelecidas nesse Pacto, quer no respeitante à Assembleia Constituinte, quer no respeitante aos futuros órgãos de soberania – as primeiras como que poderiam, na prática, colocar sob tutela a Assembleia, as segundas correspondiam a uma pré-Constituição”. (...) O MFA detinha pois um poder de controlo sobre o poder constituinte formal. (...)
A Constituição e a Constituinte estavam, pois, muito condicionadas, contra o princípio, por exemplo, enunciado por Badura, de que “a vontade constituinte do Povo” tem de ser o produto de uma confrontação livre de grupos e opiniões que não pode comportar qualquer “decisão voluntarista”. De facto, os limites do poder constituinte parlamentar eram não só “numerosos”, como correspondiam às decisões fundamentais, isto é, às escolhas da “direcção constituinte”. Não só há um processo constituinte contínuo, como os elementos materiais parecem preceder as formas, as quais se limitariam a exarar a fórmula “definitiva” da lei constitucional. As “formas” jurídicas como que desempenhavam um papel veicular. (...)
O próprio mandato da Assembleia Constituinte tinha, aliás, algo de uma missão, não forçosamente no sentido militar ou político-militar da expressão, mas como cumprimentos de um objectivo estratégico definido pelo comando da revolução. Aparentemente estaríamos perante uma confirmação apócrifa, embora também num encaixe muito específico, da tese de Haugs, referida por Ehmke, segundo a qual no acto de se dar a Constituição o Poder Constituinte se tornaria num poder constituído, num órgão de Estado, com todas as consequências daí dedutíveis, nomeadamente em sede de revisão. É certo que esta Assembleia Constituinte provém de eleições directas, mas também é verdade que os agentes e as propostas partidárias haviam sido previamente aperfeiçoadas do ponto de vista revolucionário. (...)
Esta continuidade e contiguidade do MFA, à frente, ao lado ou na retaguarda do poder constituinte e da Constituição, ainda que sucessivamente diminuído, é muito relevante. Estabelece uma ligação umbilical prolongada para lá do próprio “parto” da Constituição e que só se extingue quando é considerada como assegurada e interiorizada pelo próprio movimento constitucional. (...) O processo Revolução-Constituição não tem descontinuidade interna embora se possa falar de sucessivos actos de “revisão” interna e se possa considerar que prevaleceu, através dessas sucessivas revisões, a interpretação mais “moderada” da Revolução.
Pode até ser possível verificar como é que, por uma espécie de astúcia interna da História, se veio a realizar uma aproximação recíproca e sucessiva entre Revolução e Constituição. De facto, através do contra-golpe de 25 de Novembro 1975, a Revolução conflui por si mesma para a Constituição, numa espécie de acostagem ou repouso que teria parecido antes impossível e que era um produto da transformação interna da Revolução. Essa aproximação é, porém, apenas recíproca daquela que, em sentido inverso e simétrico, a Constituição fora fazendo à Revolução. (...)
Tal como acontecera depois de Napoleão declarar a Revolução terminada, também aqui se abre a era da sua “codificação” e a lei passa a ser considerada o “depósito sagrado” que explica a rigidez prolongada até à própria interpretação. A Revolução não só não acabara como “superintendia” a Constituição, embora esta, por sua vez, viesse a transformar em “definitiva” essa legitimidade antes “provisória”. A Constituição seria mesmo a continuação da Revolução “por outros meios”, os meios mais estáveis e mais respeitáveis do Direito Constitucional. Em última análise, a Constituição poderia ser vista como a Revolução formal ou a forma da Revolução e a Revolução como a Constituição material ou a matéria da Revolução. (...)
Neste quadro, a verdadeira polarização dialéctica seria entre a Revolução e a Constituição de um lado e a realidade política, económica e social emergente, do outro lado, mais do que entre Constituição e Revolução. Afinal, se Revolução é o oposto de Evolução é-o não só pela ruptura que identifica a sua concepção genética, mas também pelo arrimo fixista em que depois se barrica ou entrincheira. (...)
Só por a Revolução não ter por intérprete um partido, uma chefia, mas um “documento”, está já aberta uma radical expressão de possibilidade democrática. Esse simples facto vem expô-la à crítica e confronto, no que será um permanente desafio ao seu próprio “mito”. (...)

(in "Teoria da Constituição de 1976 - a transição dualista", p. 136-148)

terça-feira, 8 de abril de 2008

Revolução, 1976: Passado, Presente, Futuro


Revolução é, em sentido etimológico – como o lembrou há tempos Castanheira Neves (“Revolução e Direito”) – rotação astrológica. É, aliás, quando a curva do movimento revolucionário se começa a aproximar da sua rotação completa, e sobretudo nuns momentos de paz, longe dos pólos da elipse, em que todo o corpo em movimento se reduz à linha da trajectória percorrida, que melhor se capta a origem e o destino do percurso e podemos graduar com precisão os ciclos espacio-temporais do seu passado, do seu presente e do seu futuro. A passagem de mais um ano mais ajuda a esta revelação – desfile de toda a revolução, num só palco ou tela, através dos seus três «andamentos» principais:

a) O ciclo épico – romântico; b) O ciclo lírico – fantasista; c) O ciclo realista – racionalista.

É uma classificação ajustada a uma revolução que tem muito de literário e num país que deve muito aos poetas. A dialéctica hegeliana da tese, antítese e síntese seria demasiado abstracta e geral – e portanto cortante e delimitativa – para um país de «padrões», «bandeiras» e «velas» e uma revolução de «palavras de ordem», «comícios» e «casos de informação» (Renascença, Televisão, R.C.P., Século, etc …).
1) O primeiro foi o ciclo épico, completamente encerrado com o 25 de Novembro e já com o balão a esvaziar a partir da queda de Gonçalves. Foi a fase da subida do papagaio puxado por mãos infantis, com vento de feição, soprado por foles interessados.
Duas forças de sinal contrário mas de resultado conjunto – a iconoclasta e a utópica – traçam a sociedade de cima a baixo e de lado a lado, fazendo estalar toda a estrutura reticular das mínimas formas de vida colectiva e impedindo qualquer religação ou soldadura entre os vários fragmentos seccionados. A Revolução é sobretudo recusa – o negativo absoluto da ordem evicta. Sedenta de factos e emoções, a Revolução infantilmente não chega ao seu auto-reconhecimento e aspira a um modelo «paternal» ou «ancestral» de Revolução. É por isso que desconhece os seus limites.
2) O segundo é o ciclo lírico: A Revolução percebe-se a si mesma. Do mito da Revolução decai-se para a realidade da Revolução. Sente-se que a revolução tem já um passado. É a fase da revolução dos «puros», dos mais revolucionários entre os revolucionários. Esta purificação pode até parecer autofagia. É a fase dos revolucionários «bons» e «bens» a seguir à dos revolucionários «maus» e «feios». Em vez das curtas máximas revolucionárias aparecem os discursos, uma queda de ritmo, um abandono da rua, uma substituição do «teatro» e da «fita» pela «literatura revolucionária», e espreita mesmo um certo barroquismo. O socialismo é cândido: tão cândido que nem existe em parte nenhuma do mundo, sobretudo do mesmo mundo, socialismo semelhante. A Revolução é pura e contempla-se narcisisticamente mas, sem saber, vai ficando cada vez mais sozinha. O espírito já se foi com as potências do gólgota e a razão ainda não chegou. A Revolução dá-se a luxos formais, patina e é nesta fase intermediária que melhor se percebe o que as Revoluções têm de puro intervalo (ou recreio) na rotina já prenunciada de grande preguiça colectiva.
3) O terceiro é o ciclo realista: A chamada à terra. A Revolução sai de si, do seu processo interno. O processo revolucionário, de formal transforma-se em processo revolucionário real. Deixa de ser comandado só de cima, passa a ser desafiado de baixo. A Revolução tem que sair do seu casulo e estabelecer uma relação operativa com o mundo social a que pertence. Soluções em vez da bravata do mito (épico) ou do sentimento (lírico) da Revolução. É, sobretudo, um centro unívoco e definido em vez da decomposição violenta (romântica) ou barroca (fantasista) das etapas antecedentes. Nem as estátuas de mármore, nem as de cera, mas sim a direcção de um projecto concreto. O macho da Revolução encontra então a sua fêmea. Se até então a Revolução se desfasava da sociedade, por um lado, e do Estado, por outro, ei-la agora, porque cansada, já liricamente mole, possuída por ambos… e sabe-se lá se vorazmente.
Em que fase se encontra a Revolução Portuguesa neste momento? Formalmente entre a 2.ª e a 3.ª fases; realmente, porém, perante a necessidade de passar rapidamente à última, sobretudo dado o aperto das condições económicas. Estamos na fase dos «últimos pensamentos» sobre a Revolução. Esse é o gongo do último «round». A não se avançar para cumprir o ciclo poderia a «rotação-revolução» ser a de uma estrela cadente. É preciso respeitar a «passada» astrológica…
A racionalidade é mais precisa e determinada que o resto: deve chegar ao entardecer, depois do recolhimento lírico, mas antes da noite.
A racionalidade, além de precisa e por o ser, é, também, empenhada e criadora. Este último salto não deve ser um empurrão. Deve ser uma iniciativa, ou mesmo um «assalto». De facto, é então que começará – esperemo-lo – a única Revolução… definitiva …

(in “A Bordo da Revolução”, Ensaios de Análise Política 75/76, Selecta)

domingo, 6 de abril de 2008

Os católicos e a política

No mundo moderno, a relação entre os católicos e a política volta a estar na primeira linha, tanto da reflexão como da História. Por um lado, é o que resulta da origem, postura e doutrina de um Papa “empenhado” como João Paulo II. É a consequência do seu apelo a uma fé indivisível, assumida como “cultura” que há-de ser “plenamente assumida, pensada e vivida”, em todos os planos da existência, sem excepção. Por outro lado, é a própria história concreta, de hoje, nas Filipinas, Polónia, Nicarágua, Chile, Haiti, Timor até, na África do Sul também, que a tal incita. Aí a Igreja e os católicos (ou os cristão em geral) assumem um claro papel político, ao mesmo tempo de “libertação” e de “reconciliação” nacional.
Curiosamente, entre nós, “nação fidelíssima”, país católico entre todos (na idade da crença e no número dos crentes), o tema ou é esquivado ou apenas obscuramente aludido. A questão do aborto, o problema de um canal para a Igreja, ou, em geral, a influência pública através da Rádio Renascença, são os aspectos mais salientes de uma “intervenção” quase política. No entanto, além de avulsa, limitada e defensiva, essa intervenção tem envolvido mais directamente (salvo a questão do aborto) a organização da Igreja do que a totalidade do mundo católico. A Igreja está atenta e activa, como o demonstram os seus documentos pastorais, ou a intervenção dos seus bispos e sacerdotes, além da pedagogia institucional da Universidade e do ensino católico em geral. Há, além disso, significativos movimentos de leigos, sobretudo no interior da própria Igreja, e uma reiteração da referência pastoral ao “dever de participação política” dos crentes. Não se pode dizer, porém, que o “movimento católico” mobilize, abranja ou impregne, com vocação dirigente, uma concepção própria da vida social e política, no conjunto dos aspectos que esta reveste e com a implicação, coordenada e militante, dos vários grupos e energias de todo o “povo de Deus”.
É certo que, entre nós, não existe qualquer “ruptura” que possa explicar, como no caso dos países citados, uma “revelação” ou “actualização” tão manifesta da consciência política dos católicos. Mas é também verdade que em toda a Europa, mesmo na mais laicizada e normalizada, essa consciência cristã conhece formas práticas mais intensas, organizadas e permanentes de relação com a política e o Estado do que as existentes entre nós. No caso da juventude, essa tendência tende mesmo a ampliar-se, como o mostra bem o maior movimento juvenil italiano – o Movimento Popular. Mesmo os velhos partidos cristãos continuam a ter êxitos crescentes – surpreendentes até! –, como aconteceu em recentes eleições na Holanda e na Áustria. A própria construção europeia assenta originariamente na visão de uma unidade da cultura cristã do velho continente (como o lembrava recentemente um artigo de Xavier Pintado, a propósito do grande homem político católico que foi Robert Schumann) e a bipolarização política essencial na Europa é entre os representantes do seu “humanismo cristão” e os do seu “humanismo laico”.
Entre nós, é evidente que não é assim. O mundo católico e o mundo político não têm uma relação directa e una. O primeiro intervém sobre o segundo como “palavra”, mas não no meio dele, como “acção” católica. A maioria moral ou é minoria política ou está pura e simplesmente ausente do movimento de condução global da sociedade. Há uma desproporção enorme entre o catolicismo da missa dominical e o que isso representa como valor “normativo” e “prático” na direcção e funcionamento das estruturas dirigentes da nossa sociedade. Parece mesmo subsistir uma questão prévia de legitimação dos católicos para poderem intervir como tal a partir da sua identidade e dos seus valores, embora apenas nos termos e com os argumentos de afirmação comum dos cidadãos.
O que não pode deixar de admitir, em qualquer caso, é que esta questão é tão importante para a sociedade como para a própria Igreja. É importante para a sociedade porque a renovação “ética” necessária já se tornou entre nós num factor de demagogia eleitoral, mas não correspondeu ainda a nenhum resultado autêntico, duradoiro e profundo. Aliás, é duvidoso que essa renovação possa ser operada a partir de forças meramente políticas ou deliberações simplesmente “voluntaristas”, “moralistas” e “intelectualistas”, que, por um lado, invocam a “ética”, mas, por outro lado, tratam a “verdade” em política como manifestação de candura ou ingenuidade. A renovação “ética” para ser autêntica e eficaz precisaria de levedar por dentro da própria sociedade, através da cultura e da moral que a podem identificar e recuperar.
Mas a questão de uma nova relação entre os católicos e a política é também importante para a Igreja. É que os valores que esta representa enfrentam, hoje, um desafio crucial para o seu futuro e, em geral, para a experiência da própria fé. Falo dos seus valores e significados espirituais, mas também da escola livre, da informação aberta e responsável, da unidade da família como base de desenvolvimento social, da reconciliação entre “solidariedade” e “eficiência” no campo da produção, da mobilização cívica da juventude, do papel mediador dos grupos intermédios, da humanização da saúde e da política demográfica, da regionalização e promoção das zonas mais desfavorecidas. São tudo outras tantas zonas em relação às quais teria utilidade sistematizar uma política activa de inspiração cristã. Inclusivamente só uma política cristã poderia desempenhar o papel mediador e pacificador que, até há pouco, parecia ainda caber aos “militares” na sociedade portuguesa. Não será uma política de inspiração cristã que dividirá o mundo católico. Pelo contrário, será a sua ausência – como o demonstra a realidade actual – que provocará não só a divisão, como a anemia e o vazio, capazes de conduzir a uma desagregação progressiva da mais pública e enraizada forma de consciência moral do País – a cristã.

Há, pelo menos, que pôr as questões. Por exemplo: a missão da Igreja é a construção de uma sociedade nova ou, apenas, a “denúncia” dos “pecados” da sociedade existente? É possível confinar a fé religiosa ao momento e lugar do sagrado, enquanto todas as restantes formas de vida se podem desenvolver segundo uma análise em que a fé não entra? É possível ignorar os valores cristãos na vida pública, sem com isso operar uma ruptura com as próprias raízes históricas, culturais ou religiosas da sociedade portuguesa? É possível superar a crise contemporânea e nacional, mantendo este dualismo entre a vida interior dos homens e a vida pública das comunidades? Será possível que S. Tomás reine para dentro de uma porta e Machiavelli no meio da praça pública onde essa porta desemboca?

Não se trata de desenterrar o machado de guerra de uma nova “questão religiosa”. Será necessário mesmo ultrapassar restos de clericalismo, ampliando pontes para o mundo laico, que repudiou também o anticlericalismo. A verdadeira tolerância, no entanto, é a que assenta na fortaleza das próprias convicções e os católicos não têm que ter uma atitude política passiva, clandestina, dividida, pessimista e subalterna. Não têm que deixar “laicizar” a mais importante parte do seu campo de consciência e acção – aquele que tem a ver com a “substância” e as “expressões” mais elevadas do seu ser social.
A geral fraqueza da sociedade civil portuguesa não ajuda. Contribui mesmo para a perda das últimas certezas dessa sociedade. A concepção dominante da História é ainda demasiado imediatista e é nesse contexto que se explica o activismo, dirigismo e crescimento do Estado como único arrimo para a erosão da consciência política colectiva. Mas há que reagir e os católicos, com a Igreja, podem bem ser a parte mais sólida dessa recuperação da sociedade civil. Até como via para reabilitar a política e evitar que esta continue a ser um puro jogo de superfície, onde a própria renovação “ética” acabe por se transformar numa nova demagogia. Talvez a renovação “moral”, a partir da sociedade real e dos seus valores profundos, entranhadamente cristãos, seja afinal mais simples e mais eficaz do que a renovação “ética”, a partir, outra vez, dos modelos da Revolução, do Estado e dos seus partidos. Aliás, o processo de reidentificação que a integração europeia nos oferece e requer – numa Europa que é também a Europa das Catedrais – é uma boa oportunidade para essa segunda forma de verdadeira auto-determinação da nossa sociedade – e não apenas do nosso Estado.


(artigo no Diário de Notícias, 7 de agosto de 1986)