sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Em Casa de Ferreiro Espeto De Pau?

As férias dos cronistas são longas, até porque as canetas dos ditos vão ficando mais pesadas com a idade. Mas quando se trata de futebol há uma razão suplementar: é preciso deixar assentar antes de fazer avançar a caneta. Idealmente só se devia começar a escrever lá para o meio do campeonato. De outro modo é como jogar na roleta.
Isto é uma desculpa minha, claro. Mas mais do que isso. Veja-se para já o caso Bosman. O que parecia mais difícil é o que está a ser mais fácil. Afinal os clubes entenderam a internacionalização e estão a sair-se melhor nos campeonatos de fora do que nos de dentro. O FC Porto a ganhar em Milão e a empatar nas Antas é o caso mais nítido, mas o Benfica e o Sporting não andam muito longe de caber neste juízo. O Guimarães até veio perder em casa depois de ter eliminado o Parma lá fora. Ah como é bem português o ditado — em casa de ferreiro espeto de pau.
Ainda por cima a internacionalização do futebol português seminacionalizou equipas lá de fora. Já vejo jogos do Barcelona e já torço pela equipa azul-grená só porque tem três portugueses. E o Oviedo, do grande profissional que é Paulo Bento, também tilinta na minha cabeça quando chega o fim-de-semana. A minha curiosidade passa por Madrid, Dortmund, Florença, Roterdão e a Escócia, e frequentemente rejubilo com os meus compatriotas que compõem uma espécie de equipa luso-europeia imaginária e dispersa.
O português excede-se lá fora. Os nossos emigrantes são os melhores trabalhadores do mundo, mas por cá as queixas são frequentes. Os alunos que vão lá para fora ao abrigo do Erasmus vêm com notas que as universidades de cá — aliás indevidamente — até se recusam a reconhecer, por lhes parecerem tão altas. Esquece-se a motivação de ser português do lado de fora.
O português não só vai "casar à terra alheia", como diz uma das cantigas do repertório do Orfeon conimbricense, como lá se faz muita gente. Muitos se queixavam do efeito Bosman e da exportação de "craques" portugueses. Ao mesmo tempo, outros gritavam contra a importação de estrangeiros. Mas o futebol português é que sobe no "ranking" e a contabilidade está a nosso favor. Além de termos ficado com a tal equipa imaginária que nos permite jogar em quase toda a Europa todos os fins-de-semana.
Espero é que a Selecção não borre a escrita. Afinal Artur Jorge também já foi emigrante. E muitos dos seus melhores jogadores não o são menos. Seria, aliás, paradoxal que os clubes brilhassem por fora e a Selecção ficasse na sombra. Bons votos para a Selecção. Muitos golos se possível neste recomeço pós-estival do cronista. Afinal, são os golos que nos tornam fluentes.


(Crónica de 8 de Outubro de 1996 no jornal O Jogo)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Entre a Hegemonia Socialista e a Hegemonia Liberal – ou a “Abrangência” como Estratégia Político-Cultural do Declínio Socialista


A relação entre Política e Cultura é em Portugal uma relação descuidada ou, mesmo, desprezada. Tanto no plano teórico, como no plano prático.
De resto, entre nós, a política tem-se sempre deixado inspirar demasiado pela absorvente importância de outras questões – sobretudo a financeira e a militar – apesar de estas continuarem (e talvez por isso mesmo) insolúveis e de pouco dizermos ao mundo em qualquer desses dois planos.
É rara entre nós, por exemplo, a concepção da política e do político como “guia”, “mediador” ou “intérprete” entre a cultura do seu país e a do seu tempo, facto que, aliás, não se pode confundir com a abundância de políticos próximos da tentação literária ou da condição de escritores falhados. Os políticos movem-se mais ora como sombra dos interesses, ora como a sombra da força, ora medindo essas duas sombras com argumentos jurídicos, mais do que como a expressão de um entendimento cultural do país e da sua necessidade de renovação. O ambiente é tal que, às vezes, se chama intelectual a um político para o “queimar” ou reduzir. Ser político e, ao mesmo tempo, ter ideias pode ser considerado uma fragilidade. Em compensação, não ter contacto com os negócios pode ser considerado como sinal de imperícia política... E, no entanto, a dimensão da História e a dimensão do Estado são categorias culturais essenciais de cuja consciência terá que depender forçosamente qualquer projecto político de longo prazo, crível, eficaz e minimamente consensual. Só nessa consciência e dimensão se poderá mesmo basear a recusa de uma política do efémero, assim como a de qualquer pura administração situacionista. Talvez seja até por isto mesmo, por falta desse elemento “cultural” na acção política, que tanto o Bloco-Central, como todo o centro político da actual situação portuguesa tende para a simples glória do dia seguinte, tendo perdido da História até a ilusão...
É curioso notar, aliás, como em Portugal temos vivido politicamente entre o espírito salvífico da Revolução e a condescendência total do Pragmatismo mais absoluto. No primeiro caso (Revolução), a ideologia é uma espécie de “enlatado” que substitui as ideias próprias. No segundo caso (Pragmatismo), as ideias são consideradas desnecessárias, o que, aliás, é o primeiro passo para serem consideradas perigosas. Revolução e Pragmatismo são, pois, dois opostos totais mas que se conjugam entre nós e sem a mediação fundamental da “razão cultural” ou político-cultural. Entre a vaga optimista do país-cor-de-rosa e a vaga pessimista do país-negro, não se consegue fixar o passo no movimento da modernidade europeia, pensado previamente, concebido, organizado e divulgado. E as categorias humanas dominantes são duas, também. De um lado, o revolucionário que nasce com a “Fénix” sempre que as tensões se acumularam excessivamente e o rol de truques do “pragmatismo” acabou. Do outro lado, o pragmático que cavalga a onda de informação e cultiva a habilidade rotineira, o “facto” político e o deambular no palco segundo encenações improvisadas. O “projecto” político é para este último personagem um fardo juvenil que se vai descarregando. A própria hipertensão ideológica primeiro provocada se transforma, depois, em confusão ideológica, aparecendo, por exemplo, os de esquerda a cantar motes liberais, quando não a erguer pequenos fachos de autoritarismo.
São dois tempos diferentes e opostos, mas do mesmo ritmo conjunto.
Dir-se-ia, sobretudo, que, entre nós, a cultura, a ciência e o espírito moderno, apesar dos progressos havidos, nunca conseguiram até agora impregnar a vida diária do país. Nunca conseguiram tornar-se valores médios de referência e, por essa via, aspirar a um peso político determinante, dirigente ou sequer arbitral. O que, porém, tem de se distinguir da permanente institucionalização de uma cultura oficial, de uma cultura de regime, postiça pois, que as revoluções sempre alimentam. Mas, também, esta “revolução” “cultural” é serva da política, tal e qual como a própria revolução política surgira ou tivera, pelo menos, como parteira, a revolução militar. A institucionalização de uma cultura oficial é, à distância, retrospectivamente, apenas o mais pragmático dos truques, uma espécie de propaganda consolidada, subliminar até ao tutano das próprias origens constituintes do sistema, qual mão invisível. Mas é o estabelecimento desse partido político-cultural-oficial que explica a constante submersão tanto da cultura tradicional portuguesa como da invenção cultural. (...)


(in "Com Portugal no Futuro", de Francisco Lucas Pires, IDL, Lisboa 1985, p. 17-19)

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Um Curso de Economia Para Treinadores


Ao ver, na televisão, em Estrasburgo os 3-0 do Sporting ao Mónaco — ainda por cima com o capitão do Sporting e da Selecção, Oceano, em grande — o meu primeiro pensamento foi que estava vingada a maldade francesa do senhor Batta. A ironia era ver o Sporting de Octávio a vingar a selecção do arbítrio do juiz gaulês. No dia seguinte, porém, tive uma decepção. Nem o "Figaro" nem o "Le Monde" falavam do Mónaco. Afinal, se calhar, porque o Mónaco é um principado independente — o que, aliás, não impediu essa equipa de ser campeã de França. Ou se calhar só o consideram francês quando ganha. O pior estava para chegar em Lisboa. Octávio levava um cartão amarelo carregado do vice-presidente do BPI. O "banco" dos treinadores agora também depende do banco propriamente dito. O Sporting desportivo já ganhou seiscentos mil contos na Liga dos Campeões, mas o Sporting financeiro pode ter perdido outro tanto com as declarações de Octávio. A lei do dinheiro parece ser a do silêncio. O que também significa que as sociedades desportivas podem vir a conseguir uma pacificação do futebol que os "conselhos de disciplina" e "justiça" estavam longe de conseguir.
O Benfica em Bastia perdeu 1-0 e o "Figaro" fazia uma velhaca alusão ao escasso físico dos jogadores do Benfica. Nem sequer esclarecia que não era por passarem fome. Em situação normal, o 1-0 fora não era um mau resultado mas, agora, para o Benfica, o sofrível já é péssimo. A centelha não há maneira de explodir. E, por este andar, a não ser que haja ressurreição em Vila do Conde, a próxima assembleia geral, na semana que vem, começa a ser o jogo mais apetecido.
Sob este aspecto o futebol não funciona como a política. Ainda se espera que no órgão "parlamentar" haja acontecimentos não previstos. Não se marcam aí os golos que faltam no relvado. Mas imagina-se que a oposição, que apenas vai soletrando algumas críticas, poderia aí emergir como emanação directa do povo benfiquista, se calhar sem "presidente", nem "treinador" nem jogadores para comprar, mas catapultado pela insatisfeita fome de ganhar.
O problema é que no Benfica começa a estar tudo em causa e quando está tudo em causa só uma revolução dá. O problema é que a vanguarda desta revolução não se nota e os riscos são grandes. O projecto de Sociedade Desportiva vem da direcção e a opinião da oposição só sussurra críticas avulsas. É isto que faz ainda medo, como se estivesse entre a decadência e o quase nada.
Apesar disto tudo quase só se fala de treinadores. De quantos treinadores já se falou! Manuel Damásio garante que Manuel José cumprirá o contrato. Eu julgo que a fórmula devia ter sido outra — se cair um caem todos. O que nem sequer é bom. Porque pelos vistos ninguém preparou a "revolução" e o Benfica devia resolver as crises apenas nas eleições. Mas também aqui treinadores e sociedade desportiva são como o saco e o baraço inseparáveis.
Para não destoar, no Porto também António Oliveira tomou a dianteira. As equipas de Lisboa, cidade de Ulisses, parecem dar-se melhor com os ares da Grécia. O norte é mais romano do que grego, como é mais cristão do que árabe... embora as contas do FC Porto sejam mais um lugar ao sol (1º, 2º) no seu grupo, o treinador do FC Porto também não escapou aos considerandos financeiros. Tal como a Liga dos Campeões está, até valia mais o segundo lugar, disse Oliveira. Afinal, ela seria só para quem faz "investimentos loucos" e participar na superliga é só para ganhar dinheiro. Está visto: com o euro e as sociedades desportivas a chegar, nem os treinadores escapam à economia... Os novos cursos desta modalidade devem mesmo passar a incluir a cadeira de economia.

(Crónica de 20 de Setembro de 1997, no jornal "O Jogo")

Para lá da (meia) verdade politicamente correcta (Parte II)


É também neste enquadramento que se pode situar a noção de “verdade politicamente correcta” e, a partir daí, precisar algumas referências para balizar melhor a situação actual e encontrar vias do desenvolvimento qualitativo da democracia, no sentido da superação dos seus défices actuais. Que “verdade” é então esta?
1. a “verdade” politicamente correcta é “doce” e “mole”, isto é, está mais preocupada com a qualidade de vida, por exemplo, do que com a vida propriamente dita. O seu compromisso é aliás, mais com a felicidade do que com a verdade. Por isso não quer incomodar. Segundo um sociólogo americano (R. Inglehart) esta passagem dos valores “duros” aos valores “doces” seria mesmo o correlato da evolução da penúria para a abundância (The Silent Revolution: Changing Values and Political Styles Among Western publics, Princeton 177, e Culture Schiftin in Industrial Societies, Princeton, 1990). É uma verdade a que se chega sem luta e da qual não se parte missionário. Não admira que as instituições do tipo da Igreja e do Exército, guardiões principais dos valores duros, percam, paralela e proporcionalmente, centralidade e peso. A crença em Deus é, neste ambiente, como nota um jesuíta e sociólogo belga Jan Kerhops (Tensions entre échelles de valeurs en Europe, Lumen Vitae, 1994/3), menos popular como Deus Pai, instância do último julgamento, do que como Deus protector e solidário, dir-se-ia, paradoxalmente, maternal.
2. é uma “verdade de situação”, isto é descartável, dúctil ou volúvel, quase como um “transformer”. Refere-se mais a tendências do que a princípios. É provisória e reconhece-se nas sondagens mais do que nos tratados de filosofia moral ou através de programas políticos. Não aspira a longo prazo. A política tornou-se menos “programática” e mais “pragmática” e o próprio direito se tornou “reflexivo”, interdependente do destinatário e do endereço.
3. esta verdade política é mista, pública e privada ao mesmo tempo. Cada vez distingue e hierarquiza menos valores públicos e privados. A noção de “bem comum” vaza-se, na melhor das hipóteses, num vago “interesse geral”, um valor agregado, aproximando-se da mera soma abstracta de interesses privados. Além disso, a espera pública é infiltrada sistematicamente e torna-se, também por isso, indistinta da privada.
4. esta “verdade” é cada vez mais material (económica e técnica) e cada vez menos espiritual (política e moral). Tem mais a ver com números do que com valores. Por isso, além das sondagens, no plano mais político, também as estatísticas económicas jogam um papel essencial na sua formulação. O princípio da subordinação da economia à política, enfaticamente afirmado na nossa Constituição, sofre um sério revés, se é que não se inverte. Dir-se-ia que, sob este aspecto, o pós-materialismo não poderia ser mais paradoxal. Se subsistem ideologias são, sobretudo, “ideologias económicas”. A política, de resto, não só é função do mercado, como é, ela própria, um mercado, dito eleitoral. Enquanto isto, a polarização de um Estado impotente e em crise e um Mercado juzante e expansivo provoca a erosão do espaço intermédio da “sociedade civil” onde se forjavam tradições, solidariedades e valores e se civilizava ou integrava o mercado. Para lá deste, só o que é técnico e cientificamente objectivável é capaz de reunir consenso, à partida.
5. esta “verdade” é negociada e negociável. Não é mais o produto de uma “vontade geral” homogénea e clara, mas de um diálogo de grupos numa sociedade cada vez mais pluralista. Alargam-se os contratantes e os respectivos filtros negociais, como resulta da importância que assumem os “lobbies” e grupos de pressão ou da multiplicação dos patamares decisórios. E o que se procura não é uma verdade apodítica mas um consenso, sempre parecido, por definição, com a imagem desfocada de certos personagens no último filme de Woody Allen (As Faces de Harry).
Além destes podíamos acrescentar um tópico formal: a “verdade politicamente correcta” é comunicável para poder operar, também em termos de “marketing”, todos os efeitos pretendidos. A minha perspectiva não é, porém, tão pessimista como pode parecer. Por um lado, julgo que os pecados actuais da democracia não são irremediáveis e, por outro, que a situação oferece também novas oportunidades. Muitas crises democráticas que, aliás, chegaram a parecer abissais (Itália, Albânia, Japão), do tipo Titanic político – vieram encontrar possibilidades de regeneração. E também não deixou de ser verdade que em democracia não é possível mentir a todo o tempo, a toda a gente e a respeito de tudo. Haverá, de resto, que descontar o facto de a política ter sido sempre o terreno predilecto das deformações míticas e simbólicas, assim como, na expressão de Maquiavel, das máscaras e das caretas.
Afinal, existem hoje não só condições de controlo da mentira absoluta como se pode entrar para o debate público com posições mais genuínas embora nem sempre muito iguais. Parece-me mesmo despontarem entre a juventude exigências favoráveis a uma cultura política pós-maquiavélica, simultaneamente mais transparente, directa e informal, para a qual os fins não justifiquem os meios, nem subsistam as hipocrisias piedosas. O modo como a juventude respondeu recentemente à convocatória de João Paulo II em Paris (Verão de 1996) pareceu-me uma feliz contestação da cínica pergunta de Estaline sobre qual o número de divisões de que o Papa disporia… Julgo que se pode pelo menos dizer esperançosamente que, para a juventude actual, é mais importante ser verdadeiro em política do que ser de direita ou de esquerda, o que, para além do mérito geracional, é também o produto da despolarização ideológica.
O que me parece estar em causa é não ter sido compreendido por inteiro que uma ordem liberal só pode ser uma ordem moral, tal como uma ordem moral seria perigosa se não fosse igualmente uma ordem liberal. Os níveis de extensão e emancipação da economia e da sociedade liberal no mundo actual implicam automaticamente a impossibilidade de uma legitimação exterior outorgada e uma paralela necessidade de auto-legitimação, auto-regulação e auto-garantia, a partir de valores próprios, comummente partilhados mas já não impostos de fora e de cima.
(continua…)

(Versão ampliada da conferência apresentada ao “Encontro Fé e Cultura”, Coimbra 1997, in “Brotéria” 147 (1998), págs. 297-310)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Um Programa de Governo para o Primeiro Ministério da Cultura em Portugal (conclusão)

Dir-se-á que, como resulta do Programa, se trata de um conjunto muito ambicioso de propósitos. Mas é, sem dúvida, este o domínio onde temos mais para defender e onde mais temos para conquistar.
Em matéria cultural julgo, aliás, que só se pode ser ambicioso. Estamos aqui perante o que é mais geral e comum e perante o que diz respeito à própria permanência do país. É só aqui, em matéria de cultura, que Portugal continua a ser mais vasto do que a sua geografia. De resto, a qualidade e até a grandeza são apanágios da obra cultural. O epifenómeno não é a cultura, o epifenómeno é o poder, e se podemos ter várias ideologias de poder, temos, porém, uma só cultura.
A resolução dos nossos próprios problemas políticos passa, pois, pela redescoberta de um consenso cultural para aquém e para além das disputas ideológicas de que, aliás, muitos estão cansados. Julgo, por exemplo, que um grande festival de música que, aliás, falta entre nós, poderia ser, de novo, uma obra de reconciliação e renascimento mais importante do que muitas acções políticas e económicas. Quem não acreditará que a pedra filosofal para os nossos engulhos só pode ser uma grande obra cultural, inclusivamente com alguma concretização física?
Tal obra só poderá ser feita, porém, com sentido do comum, com seriedade e com verdade. A Ciência e a Cultura exprimem o mais vasto sentido do comum e a mais objectiva procura da verdade. E é por isso que, se é preciso mais dinheiro, será também preciso mais rigor, quer intelectual, quer moral. A moral, a própria moral cívica, é, pois, um pilar da obra cultural a erguer. Se conseguirmos esse nível de consciência, talvez até possa haver milagres apesar das dificuldades económicas. Não o milagre das rosas, mas, por exemplo, um “milagre” como o das Torres do Tejo, hoje anunciado pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa. E, pergunto: e se sobre o chão das ex-futuras Torres do Tejo fosse agora, ou amanhã, possível erguer o grande “atelier” cultural do país?
Não tenho nenhuma ingenuidade ao dizer isto, embora aceite que se trate de optimismo. Sei que é difícil ser Ministro na zona onde a crítica é a própria vocação e a liberdade o próprio método. Sei também que a cultura não se “ministra” e que não é um Ministro que fará a cultura ou lhe dará tudo o que falta. Há quem diga também que, além do dinheiro, faltará o tempo e que há no meio disto tudo demasiada gente “ausente” ou alheia, em termos de estado de espírito. Aliás, também aqui a batalha parece ainda ser mais a da repartição do que a da criação.
Muito pode faltar – é certo – mas não espero desfalecer nestes propósitos e estou neles empenhado com a consciência do que deve ser um Ministério da Cultura num país a caminho de novecentos anos de cultura, mas que tem hoje, outra vez, um desafio de novo inteiro e global para resolver.
Sabemos que no caso do Ministério da Cultura, este juramento perante o país que é a assumpção de qualquer responsabilidade de governo, esse juramento é também, ao mesmo tempo, um juramento estendido no tempo a todas as gerações, perante o máximo do passado e o máximo do futuro que temos! Assumo essa responsabilidade com a consciência de que num país como o nosso, tão vasto no tempo e na acção cultural e que sobre tantos aspectos é ele próprio uma obra de arte, a tendência pode ser para a mera passividade, a resignação ou a contemplação cultural.
Mas é também verdade que as novas gerações querem redescobrir culturalmente o seu país, querem redescobri-lo a palmo e com esforço, que nossa paz cívica depende, cada vez mais, de uma compreensão cultural de quem somos. É preciso fazer vir à tona uma certa ideia comum sobre quem somos. É que só um país consciente e cioso da sua força cultural comum pode sentir a segurança indispensável ao progresso.
São estes, com sinceridade, os nossos propósitos e as nossas esperanças.


(texto de apresentação do programa do 1º Ministério da Cultura e da Coordenação Científica na Assembleia da República em 1982 - in "Com Portugal no Futuro", de Francisco Lucas Pires, IDL, Lisboa 1985)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Para lá da (meia) verdade politicamente correcta (1997) (Parte I)

Do ponto de vista político, o totalitarismo político foi a mentira total – uma ilusão chamou-lhe François Furet com alguma delicadeza. Constituiu uma falsificação dos próprios fundamentos da política e do poder. Refiro-me às fontes desta, ou seja à legitimidade de tipo democratista que exibia e, afinal, constituiria um simples disfarce para o regime de nomenklatura; ao direito porque devia pautar a sua acção e foi um seu simples instrumento; aos objectivos de liberdade, desalienação e antecipação que alegava prosseguir e foram completamente postergados pelos de domínio, manipulação e subjugação, sem excepção. O erro de Gorbachev e da chamada “perestroika” foi, aliás, o de ter pensado que uma mera operação de transparência (“glasnost”) poderia ter restaurado uma “ética comunista”, afinal inexistente.
E, no entanto, os problemas da verdade política democrática não estão resolvidos no pós-comunismo. Dir-se-ia mesmo que foi ao “ficar sozinha em casa”, sem espelho e sem inimigo, que a democracia liberal descobriu os seus limites e as suas mazelas. Em Itália chegou a dizer-se que até a Máfia tinha contado com algum grau de complacência objectiva devido ao papel que desempenhara durante a grande guerra e a guerra-fria. O que, em última análise, também significaria que toda a verdade política precisa de uma aferição exterior.
Em qualquer caso, fala-se hoje, a respeito da democracia liberal, com insistência, tanto de uma crise da representação política como de uma crise de valores, ambas facilitando, por vias diferentes, novas falsificações. A repercussão desses novos défices vai projectar-se num sentimento de desafeição, desdém e, sobretudo, alheamento do político (verdrossenheit diz a ciência política alemã). Segundo o Eurobarómetro (Dez. de 1994), 56% dos eleitores europeus diziam-se “não muito” ou “mesmo nada” interessados pela política e um europeu em cada dois não estava “de todo” satisfeito com a democracia no seu país.
A respeito da representação democrática diz-se mesmo que ela também o é no sentido teatral ou que a alternativa está hoje entre populismo e tecnocracia, embora o primeiro possa ser apenas um biombo folclórico da real hegemonia da segunda. Do que se fala é, de facto, de Estado-espectáculo (Schwartzenberg), de “videocracia” (G. Sartori), de “democracia de audiências” (B.Manin), depois do governo de sondagens, em paralelo com a democracia plebiscitária e, mais em geral, a “crise da intermediação”. De facto, os partidos e outras grandes organizações representativas, como os sindicatos, sofrem da perda de militantes, da erosão da fidelização eleitoral e da crise de identidade, ao mesmo tempo que são criticados como “burocracias de voto”. Poderia até alvitrar-se que os mecanismos de “socialização política” estão a sofrer do mesmo tipo de desgaste que já haviam sofrido os da “socialização económica” – por se terem tornado, também eles, um modo de distorção da verdade que eram supostos representar.
A desintermediação sistemática que a “sociedade de informação” tenderá sempre a levar mais longe poderia desembocar, aliás, num neo-medievelismo ou num localismo global que deixariam as actuais unidades políticas e respectivas formas de representação em grande parte no ar. A globalização e o carácter tentacular deste novo processo de informação tornaram o cidadão, primeiro num receptor, “um cliente” no sentido romano, mas depois, com a Internet, num emissor autónomo que dialoga directamente com o espaço público e os centros de poder, sem necessidade de outras mediações.
A situação melhorou, pois, mas, ao mesmo tempo, tornou-se ambígua pois esta nova oportunidade de relacionamento pelas auto-estradas da informação traz consigo um risco de intoxicação informativa e de “saber opcional” (Jean de Munck) ou de cultura “à la carte”, fracturando a visão de conjunto e a possibilidade de direcção coerente que a política cidadã implica. A perda de visão de conjunto e de relação directa com os outros pode ser uma dupla perda moral ao cortar o nexo que fundava o “um por todos e o todos por um”.
Também por isso, sobre a outra crise, a dos valores, se fala de “egoísmo”, “vácuo-moral”, “crise de princípios”, “dissolução da sociedade” (v. o inquérito Sehnsuch nach Werte – Focus, n.º 12/1997, pp. 203 e ss.). Individualismo e laicização são mesmo os dois (contra)-valores tópicos que crescem mais exponencialmente na Europa. A religião e a política aparecem, por outro lado, no último escalão da pauta de interesses sufragados pelos europeus, reflectindo a crise quer dos valores mais transcendentes, no primeiro caso, quer dos mais imanentes ou comuns, no segundo. Tudo se resume, pois, numa crise da “infra-estrutura moral” (Etzioni) que amparava a procura da verdade e da virtude política e chegara a propor a democracia como “religião civil”. É como se o espírito de alerta e luta que prevalecera antes da queda do muro permitisse ao espírito democrático melhor encarecer as suas virtudes e ocultar os seus vícios. Ou talvez as verdades consumadas ou pressupostas sejam simplesmente suspeitas para um espírito liberal. Os fenómenos actuais de crise ocorrem, de facto, quando a democracia se universaliza e alcança o seu auge, como valor comum, à própria escala de Nações Unidas, qual primeiro princípio estruturante de uma nova ordem mundial.
Dir-se-ia que, enquanto ganhava o campeonato mundial, a democracia se ia vendo em dificuldades crescentes nos vários campeonatos nacionais de alguns dos mais velhos dos seus figurinos… Há mesmo quem sugira (Charles Meier num artigo no Foreign Affairs de há uns anos atrás), invocando o exemplo do que sucedeu à Europa no século XIX, a seguir à unificação da Alemanha e da Itália, que, após um grande sucesso histórico, como neste caso o da queda do muro e do fim do comunismo, há tendência para uma involução ou processo descendente.
Para já, a “verdade politicamente correcta” é um dos sub-produtos deste mal-estar. Por enquanto, parece um mal relativamente benigno – uma espécie de meia verdade. Revela, pelo menos, um certo temor da verdade sem correcção política. Tem também algo de linguagem oficial tipo “politiquês” ou, no estilo da beatitude burocrática, serve de biombo às verdades e à linguagem mais “nua e crua”, mais insubmissa, dos estratos populares.
Por vezes, a atitude “politicamente correcta” poderia prosseguir mesmo objectivos “revisionistas” que, aliás, nalgumas universidades americanas levaram a barrelas históricas, envolvendo aspectos centrais de identidade, nomeadamente, o papel das classes e dos sexos (tratados nessa linguagem como “géneros”). Parece, em geral, preocupada com uma formulação de “bom tom” que amacie as relações inter-grupais numa sociedade tipicamente pluralista que procura a integração das minorias, a obtenção de consensos e o alargamento de clientelas eleitorais. Esta atitude dir-se-ia “liberalista”, analítica, crítica de posições dominantes e estereótipos, o que é o seu lado positivo. Ao mesmo tempo, porém, tem efeitos disruptivos e relativizadores sobre a própria valia de educação e dos valores.
Para além disso, o “politicamente correcto” poderia revelar também uma situação de maior impotência da acção política como tal e a dependência do que se tem chamado “pensamento único”. Não deixa de ser curioso que seja no rescaldo do desastre dos grandes determinismos históricos que esta sensação de impotência da vontade democrática se revela. Afinal, é no momento que nos libertamos da história pré-fabricada que estaríamos, não apenas perante o fim das revoluções e das “ideologias”, como até perante a perigosidade da simples “incorrecção política”.
Por outro lado, porém, a “verdade politicamente correcta” podia ser também o subtítulo do dicionário político da globalização. Esta, tal como o “pensamento único”, não deixa senão campo para a política dos intérpretes – não para a dos autores. Como na caverna de Platão, só se vêem sombras. O “politicamente correcto” é uma política de exegetas – não isentos, embora, do moralismo de quem monopoliza o “texto”. Um mundo que chegou à sua última fronteira deixa para trás impotentes e, portanto, irresponsabilizadas todas as “potências” políticas que ainda se tomam ou são consideradas como tal.
Neste quadro, o político está condenado a ser um leitor de sinais ou, na melhor das hipóteses um médium, talvez um organizador de compromissos. Sem alternativas e sem verdadeira autonomia, a política profissionaliza-se e fica condenada a um jogo de espelhos entre caracteres pessoais, os únicos que podem oferecer um contraste aos eleitos. Noutra versão, pode tornar-se num duelo de fórmulas evasivas – de tipo “não excluo nada” – e, eventualmente, com supostos do género “elejam-me para poder fazer o que não vos posso dizer”, tornando assim ainda mais ostensivas omissões e meias-verdades.
Além disso, vai interiorizar a censura externa de que é objecto e que o adjectivo “correcta” que lhe foi aposto implica. Os poderes de censura são agora os que estão nas mãos dos media, dos juízes e dos retratos estatísticos da opinião pública. Os juízos dessa aliança mediática-judicial (Alain Minc) podem chegar a transformar-se em grandes acusações, e a forçar a mudança como nos casos de Clinton nos Estados Unidos (casos Paula Jones e Monica Lewinski) ou de Anson em Espanha (uma suposta conspiração dos media contra Filipe Gonzalez). Suspeita-se é que o jogo de poder já esteja aí tanto ou mais implicado do que a verdade ou, então, que a sorte desta venha a ser fortuita.
Neste contexto não é por acaso que tais poderes em ascensão – os juízes, os media e a burocracia – são basicamente poderes de controlo e interpretação, de mediação ou última instância. Numa segunda fase, porém, os políticos tendem a descarregar neles também os poderes e a responsabilidade de decisão, que se lhes tornaram insuportáveis, até porque é do lado dos novos contra-poderes que parece emergir uma espécie forte de legitimação. Assim se vai operando uma sibilina e também enganadora transferência de poder para instituições que não são supostas exprimir a verdade política originária mas a podem, afinal, paralisar e irresponsabilizar, deixando-a, nomeadamente, inerme perante a avalanche do mercado “sem fronteiras”.
(continua…)

(Versão ampliada da conferência apresentada ao “Encontro Fé e Cultura”, Coimbra 1997, in “Brotéria” 147 (1998), págs. 297-310)

Debates Parlamentares: a projectada Adesão de Portugal à CEE (1977)


O Sr. Lucas Pires (CDS): (...) Em quarto lugar e por último, focava este ponto: a prioridade à frente externa e a mutação qualitativa que em Portugal, e porventura no próprio seio da Comunidade, a nossa integração na Europa importará é, sem dúvida, um motivo de reorganização política nas relações entre os partidos internamente, porque de um lado ficam os partidos que aderem à Europa e do outro os partidos que a ela não aderem, mas implica também uma reorganização económica. Era no plano deste último ponto, que me parece, enfim, susceptível de considerações mais claras, que eu situava as minhas questões.
É sabido que a Europa é, sobretudo, uma grande fábrica, é o maior importador e exportador do mundo, é, portanto, uma potência mundial que vive basicamente à base da sua tecnologia e da sua mão-de-obra qualificada, que não da existência de matérias-primas ou de recursos nesse plano. Eu pergunto se o Governo dá prioridade à formação técnica dos portugueses e à integração das organizações laborais na Europa ou se dá prioridade à formação de capital e capacidade financeira e empresarial em Portugal. Isto parte da resolução do seguinte problema de análise: o que nos separa da Europa é um desnível tecnológico ou é um desnível financeiro e económico?
Este problema parece-me importante, nomeadamente porque importa saber se, tendo nós dez anos para formar uma geração profissionalmente europeia, o Governo tem algum plano educacional para responder a este desafio. Queremos nós ou não evitar ser, na Europa, mão-de-obra barata, mão-de-obra inqualificada? Temos em atenção o problema de fazer equivaler as nossas qualificações técnicas de licenciados ao nível europeu? Temos algum plano para reimportar os nossos 30.000 técnicos exilados? Ou será que vamos vestir o casaco de peles da Europa sem ter sequer roupa interior?
Risos.
Queria fazer outra pergunta, ainda que no contexto desta última. Sendo a opção do Plano aqui expressa, e às vezes mastigada, a de que a recuperação do sector privado seria feita por arrastamento do sector público e confessando agora o Governo que o desenvolvimento externo desencadeará, ele próprio, um desenvolvimento económico interno por arrastamento e sendo certo que nesta segunda perspectiva é a iniciativa privada o motor do desenvolvimento – porque quando dizemos que o desenvolvimento vem de fora para dentro estamos a utilizar uma expressão que, no fundo, quer significar que o desenvolvimento parte da iniciativa privada para iniciativa pública, porque é evidente que não vamos deixar que sejam os Estados estrangeiros a investirem aqui, etc. –, esta alteração, que é fundamental do ponto de vista do Plano, importará ou não uma nova vontade planificadora, uma nova atitude planificadora, uma revisão do Plano aprovado, enfim, tudo isso?
Dá-me ideia que há certos tiques, embora porventura insignificantes, de proteccionismo a curto prazo, portanto de atitude anti-integrativa, nomeadamente sinto isso quando tenho de deslocar-me ao estrangeiro, aos países da Europa, pois a minha liberdade de circulação é crescentemente peada e fala-se agora, até, na necessidade de vir a fazer depender essas excursões à Europa do depósito de certas quantias. Será isto uma política europeísta? É evidente que a mesma questão se põe em relação às restrições que a lei dos investimentos estrangeiros preceitua.
Quer-me parecer, portanto que há na política do Governo duas tendências que podem ser contraditórias a curto prazo: uma tendência para defender a nossa autonomia – e não se sabe até que ponto isso cria mecanismos isolacionistas em relação aos quais, depois, não é possível voltar atrás – e uma tendência para avançar em relação a essa integração.
Peço desculpa de pôr todas estas questões, e porventura algumas não terão razão de ser, mas é para isso que existe o debate. No entanto, é uma pequena compensação para o facto de não estar previsto um debate generalizado sobre esta questão da adesão à Europa.

(19 de Março de 1977, in Diário da Assembleia da República I SÉRIE – n.º 88, p. 3027-3028)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Debates Parlamentares: Voto de Pesar pela morte de Aldo Moro (1978)

O Sr. Lucas Pires (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Eu queria dizer, em nome do meu grupo parlamentar, que nos encontramos profundamente emocionados e chocados com o que acaba de se passar em Itália, com essa forma de assassínio anónimo e com os resíduos de hitlerismo e de nazismo que subsistem nesse pais.
O Sr. José Luís Nunes (PS): - Muito bem!
O Orador: - Tudo o que se diga neste momento é pouco, e até porventura, neste momento, pouco sentido político tem, na medida em que é no mais fundo da consciência de cada um de nós que se repercute sobretudo a tragédia que os Italianos acabam de viver e que é Aldo Moro. É que, no fundo, neste momento, um homem, Aldo Moro, é ao mesmo tempo toda a Humanidade, sendo fora dela e contra ela que se colocam esses verdadeiros criminosos. Trata-se de um crime contra a Humanidade o que acaba de ser cometido, tal e qual como todos os crimes contra a Humanidade que foram julgados, por exemplo, em Nuremberga.
Aplausos do PS, do PSD e do CDS.
Há para isto, e, evidentemente, para um cristão, remédios transcendentes. Mas eu espero que o Estado e a democracia saibam encontrar, além dos remédios transcendentes, os remédios imanentes para o crescendo de violência e de terror que por toda a parte um pouco, na Europa, se propagam. E se algo de positivo este e outros factos têm é que eles nos tornam mais próximos dos europeus italianos, mais próximos da Itália, e tornam todos os europeus mais próximos uns dos outros. Talvez o terrorismo, sem querer, esteja a ajudar a construir e a unificar a Europa, que é o campo fundamental onde hão-de germinar, e onde germinaram historicamente, sempre as liberdades e o direito a viver livremente e em completa integridade de corpo e de espírito.
Vozes do CDS: - Muito bem!
O Orador: - Tivemos já ocasião de chamar a atenção da Mesa para o facto de pretendermos apresentar um voto de pesar pelo assassínio de Aldo Moro. Nós associamo-nos inteiramente às palavras do Sr. Presidente da Assembleia da República ao manifestar o seu profundo pesar pelo assassínio e congratulamo-nos por saber que este é um momento de profunda unidade de todos os portugueses, de todos os europeus. De todos os portugueses, num país onde, primeiro entre todos, foi condenada a pena de morte e onde, apesar de todas as distinções que nos separam, nunca esteve em causa o facto de que todos nós queremos e respeitamos a integridade e a liberdade de todos. Assim, nós associamo-nos inteiramente, e de todo o coração, a este sentimento de pesar profundo que a Itália e a Europa vivem neste momento.
Nós desejaríamos também que o voto de pesar e de repúdio pelo terrorismo, que a Assembleia da República com certeza há-de aprovar, inclua uma manifestação de solidariedade e de profunda mágoa em relação à própria família de Aldo Moro e que se apresente às autoridades italianas - ao Presidente da República Italiana e, nomeadamente, aos nossos colegas parlamentares italianos e ao Governo Italiano - a sentida e profunda mágoa desta Assembleia.
Aplausos do PS, do PSD e do CDS.

(10 de Maio de 1978, in Diário da Assembleia da República I SÉRIE - n.º 71,Pags. 2636, 2637)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Um Programa de Governo para o Primeiro Ministério da Cultura em Portugal (parte II)

As questões são muitas e queria aqui apenas citar aquelas que correspondem a um mínimo de exigências.

Em primeiro lugar, o Orçamento. Se a Cultura e a Ciência são os bens mais valiosos é estranho que sejam os mais pobres e os mais mal vestidos. A Cultura tem 0,26% do Orçamento. Precisamos de atingir o 1% no médio prazo. Tem de ser um objectivo comum a qualquer Governo, tanto ao actual como aos seguintes e é um objectivo genérico, hoje, na Europa. Aliás, na Ciência os números actuais são igualmente aterradores: gastamos cerca de 0,3% quando as Nações Unidas recomendam 0,6% para países menos desenvolvidos. Gastamos nisto um terço do que a Grécia gasta. É certo que vamos fazendo flores, mas quem esperará nestes domínios fazer o milagre das rosas ao contrário? A este propósito, talvez se possa evocar a história do próprio Brecht ao chegar à República Democrática Alemã. Quando lhe perguntaram do que é que precisava mais, ele respondeu – “Dinheiro”. Voltaram a perguntar-lhe: “E a seguir”? E ele retorquiu outra vez: “Mais dinheiro”...
Não podemos sequer ignorar que a pletora dos Ministérios da Cultura é também à sua maneira o recíproco da escassez dos mecenas privados. E o dinheiro, os meios em geral, são, portanto, um elemento fundamental da política a desenvolver.

Em segundo lugar, um mínimo são as instalações e os equipamentos.
A Cultura tem o problema de habitação. Por isso é que lhe é difícil respirar o oxigénio da Cultura. Não sei, por exemplo, como é que no meu Ministério da Cultura, onde as pessoas estão apinhadas por vários departamentos, se pode respirar ou sentir o sopro inspirador da Cultura. Onde não há um pequeno teatro, onde não há um pequeno auditório musical, como é que pode passar por aí a inspiração ou sopro da Cultura?
O próprio Ministério da Cultura não pode deixar de ser um equipamento cultural e não o é. É também por isto que temos uma Cultura que arde, em vez de termos uma Cultura que queime. É também por isto que falta o espaço em que todos nos entendamos, por excelência: o espaço da Cultura. Infelizmente até agora a Cultura tem ficado com o que sobra.
No fundo, pensa-se nos bancos, mas não se pensa em criar fundações. Permitir-me-ia mesmo perguntar se não seria terrivelmente simbólico obrigar as multinacionais, que se instalam entre nós, a pagar algum tributo à cultura portuguesa.
Penso sobretudo – e isto é o mais importante neste aspecto – que falta o grande forum da cultura democrática. Não é verdade que falta ainda o próprio emblema físico-cultural do 25 de Abril? Não é verdade que toda a revolução democrática aspira a ter a sua própria “Ágora”? Cada um terá o seu Alto da Ajuda, mas o que é que já temos todos nós juntos como Cultura renovada e comum?
Será possível que todos, em todos os planos, tenhamos a grandeza suficiente para perceber isto?

Em terceiro lugar, outros mínimos são a formação, o estatuto e a segurança das gentes da Cultura e da Ciência. Não pensamos que os artistas só solitários, angustiados e esfarrapados podem ser criadores. Daí, por exemplo, a necessidade já posta em marcha de um regime de previdência social. Não se trata apenas de evitar a proletarização intelectual, não se trata só de evitar que os intelectuais e os artistas passem fome, não se trata só de obter o pão da cultura! Trata-se de alterar o estatuto marginalizado da inteligência que a obriga ora a ser cortesã, ora a ser mendiga, ora a ser alheia e a pôr-se de costas em relação a tudo isto. Não se pode conceber que, por falta de estatuto próprio, o artista não possa exercer uma série de funções no campo da arte. Ou será que Fernando Pessoa tinha as habilitações requeridas para orientar um Arquivo Literário? E, além disso, temos também que dar mais possibilidades de, cá dentro, preparar e ajudar a formar verdadeiras escolas portuguesas nos vários domínios da arte e da cultura, estimulando a formação artística e o gosto por ela.

Em quarto lugar, são um mínimo a segurança e a reanimação do património. Devo dizer a este propósito que tenho, desde já, em meu poder o inventário de todas as obras que arderam na Galeria de Arte Moderna e que, a certa altura, pareceu, ou se disse, não ser possível fazer. Foi-me hoje mesmo entregue tal relatório, após despacho que proferi a seguir à minha entrada no Ministério. Afinal foi possível fazer esse inventário. Afinal queremos que seja possível fazer o inventário artístico de todo o país, da própria obra de Arte que, o seu conjunto, é afinal o nosso país.
Esperemos ao menos que, como o sacrifício de Joana d’Arc, o incêndio da Galeria de Arte Moderna tenha virtudes redentoras em relação às insuficiências actuais. Mas é claro que, se não se for mais longe, o património cultural continuará a arder como uma labareda. Se tal não começar e com o próprio Ministério, em relação ao qual já sabemos que seriam precisas obras no valor de 18.000 contos para que os bombeiros pudessem garantir condições mínimas de segurança, a devastação continuará.
O autoconhecimento do país, a identificação dos bens e valores comuns e a crença na originalidade da cultura portuguesa passam por este empenho em tornar presente o nosso passado. A própria busca desta história nova, aberta com o 25 de Abril, impõe que o passado tenha uma base assente e sólida. Neste plano e para começar é que é preciso organizar a nova distribuição das responsabilidades, quanto ao património, entre o Estado e as autarquias, entre o Estado e as instituições sociais ou a iniciativa particular e reorganizar os próprios serviços públicos do Estado que tratam deste problema. Decisão que já começámos a implementar.
É preciso fazer do património um bem comum e vivo e não apenas o sótão da quinta que herdámos.

Em quinto lugar, as carências respeitantes às grandes infra-estruturas legislativas e administrativas.
O mecanismo orgânico da Cultura só começou a funcionar com o 25 de Abril e é um dos que poderia ainda ser um mecanismo exemplar. É preciso fundar um Ministério; sistematizar projectos e acções e erguer uma unidade de objectivos e estruturas. Na prática é necessário, pois, privilegiar a acção legislativa, as acções de coordenação e os objectivos de longo prazo. Se não for assim, a Secretaria de Estado da Cultura, que já foi reorganizada sete vezes, virá ainda a ser reorganizada mais sete e nunca chegará a estar reorganizada.


(texto de apresentação do programa do 1º Ministério da Cultura e da Coordenação Científica na Assembleia da República em 1982 - in "Com Portugal no Futuro", de Francisco Lucas Pires, IDL, Lisboa 1985)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Se se quiser perseguir um século XXI europeu

(...)
Se se quiser perseguir um século XXI europeu, haverá que evitar tanto uma Babel do tipo de uma Jugoslávia gigante como qualquer forma demasiado construtivista ou “unitarista” de integração dos povos europeus. Há que recusar tanto uma Europa uniforme e maximalista, sucedânea de sonhos imperiais, como uma Europa minimalista, impotente e exposta. A lógica da subsidariedade é a de uma estruturação intermédia entre esses dois extremos, sóbria, organizada de baixo para cima, subindo da pluralidade para a unidade, a começar na própria cidadania individual, através dos corpos intermédios e Estados-nação, como numa destilação em que só se chega ao topo como síntese.
Finalisticamente, por sua vez, essa unidade não pode ter senão um desiderato aberto. Aberto e solidário, isto é, duplamente oposto a toda a possibilidade de totalização. Os processos de integração e diferenciação avançarão, aliás, lado a lado, como lógica de todo o mundo moderno. Se o pluralismo é uma essência estrutural da futura União Europeia, é preciso que transforme o seu carácter proteiforme em fonte de sinergias, ao mesmo tempo que só aceita fundir-se na medida da própria tradição comum,”imagem do homem” europeu e coesão mínima da sociedade comunitária. Um modelo de unidade aberta, e neste sentido por definição indefinível, é o único viável e desejável, mas tem de ser insuflado pela inspiração das ideias básicas de subsidariedade, solidariedade e abertura. É essa a Europa que se poderá construir democraticamente e em paz.

(excerto de “O Que É – Europa”, de Francisco Lucas Pires, Difusão Cultural, 1992, p.130-131)

O Futebol de Casino




A situação da Direcção do Benfica assemelha-se “paradoxalmente” à do jogador inveterado, tal como foi descrito por Dostoiévski: quanto mais perde mais joga, mais investe no jogo. Em teoria, a solução seria parar este delírio, mas compreende-se, ao mesmo tempo, que ele arraste alguns adeptos, envolvidos, não apenas como curiosos absorvidos por esta sucessão de lances, mas também como apostadores por interposta colectividade.
A diferença neste momento é que o “público” como a “banca” de casino estão à beira de constatar a falência do jogador, isto é, a própria inviabilidade de continuar a apostar – como no momento da história em que todos param e uma criança se levanta para apontar que o rei vai nu.
Ter-se chegado a este ponto também significa, porém, outra coisa mais grave – que as alternativas não estão a funcionar. As personalidades da oposição são capazes, dedicadas e sabedoras. Mas os seus projectos alternativos não foram ainda percebidos publicamente nem parecem respaldados pelo “povo” benfiquista – o único, aliás, que poderia assumir uma curva revolucionária para o “delírio” de jogo e aposta que se apossou do clube. Serão eles capazes de provocar a emoção que é o “big-bang” do carisma? Terá isso acontecido já ontem quando este texto já estava na paginação?
As alternativas estão assim duplamente no escuro e, de algumas delas, poderia mesmo suspeitar-se que podem simplesmente voltar ao casino. Em qualquer caso, a situação presta-se a soluções desesperadas. Pode mesmo preferir-se alguém que acredite ao menos na derrota – o que pode parecer preferível a quem não exiba qualquer crença séria. Isto quando a primeira preocupação devia ser parar a lógica de casino, abandonar a roleta de jogadores e técnicos, o que, por si próprio, já é um projecto.
No meio da tragédia não nos podemos é queixar de que o clube não disponha de uma série de pessoas, a que na baixa gíria se chamaria de “bons políticos”. Uma Direcção que sobrevive a quatro treinadores e meia centena de jogadores em trânsito é obra! Transformar todos esses “passageiros” do clube numa espécie de pára-raios de crises e trovoadas é significativo. A equipa e os treinos são vistos como algo de destacado no próprio clube quando na realidade são o seu próprio motor, a sua identidade e o seu chamariz. Na nossa política os chefes habituados a ignorar responsabilidades pelos actos dos subordinados ainda não haviam conseguido resultados tão prodigiosos.
É curioso como há uma tal capacidade para atrair a derrota – o que na política se trataria como um anti-carisma – e, ainda assim, manter a ilusão da vitória que, no entanto, se tornou no puro delírio da aposta pela aposta. Num curso universitário um tal número de “chumbos” já teria conduzido à prescrição. Para além disso, seria natural o desalento do próprio líder, a deserção dos colaboradores, o cair do pano e até o caos. Mas eis como a “aposta pela aposta” se consegue sustentar anos e anos.
Sinal de aptidão táctica é também antecipar eleições sem falar de demissão. É como se o regime parlamentar puro, à inglesa, tivesse investido o futebol que é, no entanto, todo o contrário disso. E, no entanto, as justificações até parecem verosímeis, pois o projecto de sociedades desportivas pode sofrer com as rupturas dolorosas. Nesse plano do que é a boa política na má gíria, uma inabilidade gritante, porém: o modo como Manuel José foi despedido depois de lhe terem sido retirados os 200 por cento de confiança. Com esse falhanço, transformou-se um aparente responsável pelos resultados, numa real vítima da atrapalhação fugitiva.
E para já não vejo senão três remédios: parar o casino, ouvir o povo do Benfica e ganhar ao Sporting.

(Crónica semanal no Jornal “O Jogo”, 27 de Setembro de 1997)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Um Programa de Governo para o Primeiro Ministério da Cultura em Portugal (parte I)

A elevação dos sectores da Cultura e da Coordenação Científica a Ministério traduz uma diferença de natureza e não apenas uma diferença de grau em relação à situação anterior e é, por si só, a primeira forma ou etapa de realização de um programa nestas áreas.
Esperemos que esta conquista seja hoje e desta vez uma conquista irreversível. Desejo-o pessoalmente porque ela, por si mesma, já incita as ideias a falar em voz mais alta e espero com sinceridade, por isso, que ela se torne uma conquista comum do mundo cultural e da cultura portuguesa.
Na verdade, fala-se muito da criação de “factos políticos”. Mas será de criar factos ou de criar ideias que o país mais precisa? O excesso de factos e a carência de ideias não será o mais perigoso sinal de desastre? Não será a ditadura o próprio regime em que só há factos? Não será até por isso que dela se diz ser o factum?
Por tudo isto, a criação de um Ministério da Cultura e da Coordenação Científica não poderia deixar de aspirar a ser um bem para as ideias e para os homens de ideias – para todas as ideias e para todos os homens de ideias, em relação aos quais não se pretende ser senão um equipamento e um “pivot” da acção conjunta.
Num país a recriar-se ou, pelo menos, a reposicionar-se no mundo, isto não é apenas importante. Julgo que pode ser vital! É que, no confronto com o pré-25 de Abril, um Ministério da Cultura e da Coordenação Científica só pode querer significar o contrário do silêncio, da censura e do dogmatismo cultural. Mas mais do que isso: tem de significar a luta por uma cultura afirmativa, activa e própria – luta não por acção directa, mas por alargamento do campo de expressão cultural dos portugueses. Por sua vez, na trajectória da revolução democrática do 25 de Abril, a criação do novo Ministério há-de traduzir também a longa marcha que nos permitiu passar e sair do ideologismo barato, importado e cego para as ideias mais claras e próprias sobre nós próprios como país... A criação do novo Ministério há-de traduzir também a longa marcha que nos permitiu passar dos pensamentos feitos com bandeira e pregão, até ao pensar livre e real do país, ao pensar na primeira pessoa individual e na primeira pessoa colectiva. A dignidade e a grandeza da Cultura provêm de que ela se gera directamente do país e através dele e não é apenas a sombra mendiga de uma luta originariamente política, travada no interior do Estado.
Não quero esquecer, porém, nesta altura, o quanto este percurso deve aos deputados que nesta Assembleia têm batalhado pela Cultura, aos sucessivos titulares da Secretaria de Estado da Cultura e aos próprios serviços da Secretaria de Estado da Cultura, os quais, de uma maneira ou outra, sempre tiveram a exigência cultural como horizonte e paixão. Este é, de facto, um dos domínios que mais pode merecer uma paixão, como bem o provou o último titular da Secretaria de Estado da Cultura, Dr. Brás Teixeira.
Trata-se, aliás, de uma paixão crescente por toda a parte. Aqui mesmo neste Parlamento nunca se tinha visto um tão amplo e vasto debate cultural. E, mal abertas as portas do meu jovem Ministério, descobri de uma assentada que nesse mesmo mês receberia entre nós nada menos que do que o Sr. Ministro da Cultura do Oman, o Sr. Ministro das Artes da Grã-Bretanha, o Sr. Ministro do Multiculturalismo do Canadá e, um pouco mais tarde, estavam previstas outras visitas ou aproximações desse tipo. É claro que isto se deve sobretudo à compreensão do Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros. Mas não será também verdade que é uma nova era de preocupações culturais que se está a abrir? Quando é que houve tantos Ministros da Cultura por toda a parte e porquê? Porque é que será agora que se começa a falar de uma Europa Cultural, ganhando a dianteira sobre a própria Europa económica?

Talvez a explicação resida nisto: sem querer ser épico ou profético, o mundo está cada vez mais entre um renascimento cultural e uma hecatombe militar ou económica. Assistimos já hoje às pequenas hecatombes, económicas e militares, mas assistimos também já hoje aos pequenos renascimentos culturais. É por isso que o futuro optimista da História passa, mais do que nunca, pela Cultura e pela Ciência. Talvez até mais do que pela política e pela economia. É por isso que a cultura não é hoje mais serva da economia e da política e esse é o fenómeno que a criação dos vários Ministérios da Cultura também revela. É nesse horizonte da Ciência e da Cultura que se projecta a esperança. É nos outros horizontes que projectam as dificuldades e as catástrofes.
Entre nós, aliás, a criação de um Ministério da Cultura e da Coordenação Científica tem uma companhia sintomática: é a extinção, pela primeira vez, do departamento governativo próprio e autónomo para a informação. Neste paralelo, há um sinal revelador que não pode deixar de querer dizer objectivamente que a própria informação e Comunicação Social deverá ser mais, a partir de agora, uma questão de Cultura, como aliás já deveria resultar do n.º 3 do artigo 73.º da actual Constituição Política. O Poder já não quer mais embrulhar o país no seu jornal e os jornais, todos, poderão ser mais uma expressão viva, quotidiana e realista da própria cultura em movimento.
A tarefa não está ainda acabada mesmo neste plano. Mas há, desde já, condições para pugnar, com esperança, por uma melhoria da consciência pública em relação aos problemas da Cultura e da Ciência, por uma participação de ambas em todo o planeamento económico e político do Estado e por uma maior comparticipação e empenhamento de todos os aspectos e instituições da vida social, de todas as zonas do país e de todos os estratos sociais no desenvolvimento cultural e científico do país.
É, desta vez, uma procura a fazer de baixo para cima e não de cima para baixo. É porém uma procura vital, mais do que a da lâmpada de Aladino ou a da candeia de Diógenes, mas com a mesma noção de que, enquanto não encontrarmos essa nova luz, ainda que venhamos a estar ricos, continuaremos a estar às escuras.
A verdade é que as sociedades da Cultura e da Ciência são as sociedades modernas e as sociedades do futuro. É essa talvez até, por enquanto, o único modo de definir a sociedade pós-industrial. O seu caminho será longo e pode ser que mais entre nós do que entre alguns dos nossos parceiros. Mas é aqui, é nessa área, que melhor poderemos recuperar o atraso dos nossos relógios e é por aí que passará hoje a própria História, toda a mudança e toda a renovação da sociedade.


(texto de apresentação do programa do 1º Ministério da Cultura e da Coordenação Científica na Assembleia da República em 1982 - in "Com Portugal no Futuro", de Francisco Lucas Pires, IDL, Lisboa 1985)

Debates Parlamentares: Estatuto da Oposição (1977)


Sr. Presidente: Tem a palavra o Sr. Deputado Lucas Pires para uma intervenção.
O Sr. Lucas Pires (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É evidente que o Estatuto de Oposição não será exactamente uma lei como as outras. De facto, trata-se, por um lado, de concretizar normas das mais fundamentais da Constituição Política e que constituem a cúspide da liberdade política e os alicerces do pluralismo e trata-se, por outro lado, de esconjurar velhos demónios seguidistas e unitaristas que, em Portugal, têm perseguido a democracia desde a sua mais remota história. Por uma e por outra destas razões, o Estatuto de Oposição virá a ser, com certeza, uma lei fundamental da democracia portuguesa!

De facto, se se pode falar de um mal português, na mesma linha em que Alain Peyrefitte falou recentemente de um mal francês, podemos considerar a tendência para confundir Estado e governo e mesmo, ulteriormente, Estado e chefe do governo como um dos mais negativos handicaps da moderna mentalidade portuguesa. É, antes de mais, esta configuração político-cultural que a ideia de um Estatuto de Oposição poderá ajudar a remover e superar.
No fundo, a confusão entre governo e Estado significa que a essência do princípio monárquico, tal como o concebia o ancien régime como identificação absoluta entre um só poder e o Estado, nunca foi, entre nós, até hoje, completamente erradicada. Numa comparação mais aggiornata, poderia, também, dizer-se que o nosso ancestral modelo de governo-Estado e a conhecida fórmula autoritária do partido-Estado não estão tão longe um do outro como isso. O Estado-governo pode, até ser, apenas e só, uma das «vias originais» do Estado-partido. Por não ter tido o Estado outra identificação ou outro medium, a não ser o do Governo, é que tudo o que de decisivo há na nossa história moderna se teve de acabar por passar entre o governo e a rua, ainda que, quase sempre, através dos quartéis. É também a mesma identificação Estado-governo que gera entre nós, com tanta facilidade o domínio psicológico do situacionismo e do unanimismo, e quantas vezes, quando se está mesmo a ver que é a unanimidade no desastre. O autismo, de um lado, e a vertigem, do outro, ora o adiamento, ora a precipitação, puderam ser, assim, para nosso mal, os andamentos «constitutivos» do novo ritmo histórico-político moderno, tudo por falta de uma noção de divisibilidade, equilíbrio e controlo do poder.
Neste contexto, a oposição teria obrigatoriamente tanto de diabólico como o governo de sagrado, tanto de impotente como o governo de poderoso. Seria, de resto, em vão, esperar que um poder, onde a componente militar politicamente activista fora sempre tão decisiva, pudesse compreender a noção de oposição e, consequentemente, a noção de alternância real no exercício do poder! A verdadeira oposição era convidada a aparecer, assim, apenas depois da decisão tomada, depois do poder exercido, com inevitável espírito de contestação, em bloco e a partir de fora.
A um governo de vivas só podia naturalmente corresponder uma oposição de morras! Daí que a violência ou a burla se tornassem perspectivas normais do governo, a revolução e a guerra civil perspectivas igualmente normais da oposição. A intenção essencial do projecto do CDS é, pelo contrário, a de romper caminho para uma vida política em que a oposição esteja antes e dentro do próprio processo de decisão politica, como um sujeito normal deste, detendo a faculdade de contrapor uma direcção política geral à direcção política do governo, a respeito de todas as opções públicas e, partilhando, de facto, o exercício de soberania prática do Estado.
A oposição passa a ser encarada, pois, como pré-governo e não como pró-revolução, ao contrário do que infelizmente ainda aflora, por vezes, em certo tipo de discurso dos membros do partido do governo quando não mesmo, até, de alguns candidatos potenciais a aliados desse governo.
A incorporação da oposição no processo político é que corresponde tanto ao critério intersubjectivo e, portanto, democrático [...], como à possibilidade de reconstituição permanente da verdadeira representatividade política. É que o poder, hoje, já não pode representar uma espécie sociológica vitoriosa contra outra. Deve antes corresponder ao centro de gravidade, resultante do encontro, da tensão e do diálogo entre as múltiplas vontades e interesses colectivos relevantes.
Nesta visão, todo o poder é hoje necessariamente ambidextro e supõe uma equivalência ou parificação potencial dos partidos em democracia, nomeadamente, por exemplo, quanto ao poder informativo do Estado. A identidade do poder democrático é dual: não há a mesma dualidade que há entre um homem e um espelho, muito menos da que há entre certas nações e um muro, mas a dualidade que há entre cada homem e o outro e que corresponde à fisiologia essencial e elementar da sociedade humana.
Só assim ficará inteiramente para trás uma época do jacobinismo. Jacobinismo que continua, ainda hoje, imperceptivelmente latente na maior parte das estruturas e na mentalidade político-sociais dos países latinos, através da figura do partido dominante ou de partido carismático que reclama identificar-se, mais do que os outros, com a Constituição, e considera legítimo identificar-se oficiosamente, mais do que outros, através de controleiros seus com a própria Administração Pública. Partido dominante que em França diz que uma vitória da maioria de esquerda equivaleria à revogação da Constituição Francesa da V República e que, em Portugal, diz que a vitória da oposição ou a substituição do governo equivaleria à revogação da nova Constituição. Partido dominante que até pode ser minoritário como é visível, de maneira relativa, em França e, de maneira absoluta, em Portugal, partido dominante que afinal aceita uma configuração política do Estado em termos que reproduzem inconscientemente a configuração administrativa do mesmo Estado, isto é, em termos de unidade e hierarquia natural dos partidos perante a Constituição. O que tudo mostra bem a pesada herança que ainda nos vem do ancien régime monárquico absoluto. Partido dominante que, no extremo, integraria uma nova e paradoxal figura: a do partido único democrático. Tudo isto podendo inspirar a pergunta: será que nós queremos que o povo sinta que, para haver um novo governo, é preciso fundar uma nova República?
O Estatuto de Oposição pretende pois, ao mesmo tempo, uma alteração da mentalidade e uma alteração das estruturas do poder em Portugal. Se quiséssemos escalonar, historicamente, este programa diríamos que ficam para trás, em primeiro lugar, as concepções teológicas que pregam a eliminação ou completa marginalização do adversário político e dividem em dois hemisférios opostos toda a política falando, ora da revolução contra a reacção, ora de proletários contra burgueses, ora de arianos contra judeus, ora de amigos contra inimigos, ora de situacionistas contra oposicionistas. Com o Estatuto de Oposição ficam para trás, também e em segundo lugar, as concepções onde ainda há um resto de metafísica e ideologismo - que são, aliás, as duas formas de teologia laica - as quais defendem a subordinação do adversário político e hierarquizam a esquerda e a direita por acreditar na função iluminista da primeira e no carácter obscurantista da segunda.
A divisão entre oposição e governo é a única verdadeiramente positiva, a única que não está afectada por maniqueísmos morais, a única que exprime a base essencial do pluralismo equitativo e pacífico, a única que joga com a alternativa das capacidades mais do que com a alternativa das ideologias, a única para quem a democracia é mais um concurso de bons governantes do que embate de hostes mentais, a única para quem o adversário político não é objecto a eliminar ou subordinar, mas parceiro na concorrência, na cooperação, ou, até, na coligação política.
A alternativa oposição-governo é a única que só divide relativamente e respeita, pois, a unidade no essencial, a unidade nos valores democráticos. As outras dividem absolutamente e não reconhecem qualquer outro critério de unidade a não ser elas próprias.
Este projecto do CDS é, também, obviamente, uma forma de enterrar algumas sequelas político-culturais do regime deposto em 25 de Abril. A oposição não poderá ser mais o espantalho que o poder hasteia para defender a seara, ou a compère eleitoral do seu star-system, ou o bouc émissaire das incapacidades e frustrações do seu mando. A própria expressão incorporação (da oposição) é o contrário literal do corporativismo do poder! Um Estatuto de Oposição, tal como um tête-à-tête permanente entre governo e oposição, permitirá, sem dúvida, tornar mais transparente o debate político, evitando a décalage entre aquilo que parece e aquilo que é, décalage que correspondia a um aspecto substancial e confesso da filosofia do salazarismo.
Aliás, um Estatuto de Oposição, tal como o propusemos, é, também, função das exigências de qualquer democracia hoje em dia. De facto, se toda a democracia é uma divisão ou análise, primeiro, e um equilíbrio ou síntese, depois, essa divisão a essa análise não se podem, hoje, situar apenas ao nível constitucional como «separação de poderes», e como equilíbrio político entre os mesmos poderes, através, nomeadamente do Presidente da República. Tal divisão e tal equilíbrio tem de ser procurado também ao nível do governo e da própria Administração e, até, no campo dos próprios poderes sociais, sindicais ou de outro tipo. Talvez seja mesmo no plano do governo e da Administração que se jogam hoje as questões da democracia e da liberdade. Isto por duas conhecidas razões: por um lado, a do enorme aumento do poder da Administração e do governo; por outro lado, a da crise dos parlamentos, que é, afinal, a crise da oposição, que antes se formava naturalmente no seu seio, quando os Deputados não estavam integrados por disciplinas parlamentares e novas maiorias espontâneas eram possíveis a todo o momento. Daqui que se tenha tornado necessário encarar por toda a parte um outro conceito de oposição que implica, nomeadamente, meios de acção extraparlamentar e, mesmo, possibilidade de intervenção da oposição em certas decisões críticas do governo e da Administração que tenham a ver com o Estado como um todo, ou com a política como actividade de conformação de planificação da vida social.
Em Portugal, a necessidade de um Estatuto de Oposição corresponde, ainda, a exigências, actuais e específicas, quer conjunturais, quer estruturais, muito importantes.
Sob este aspecto, aliás, destaca-se desde logo como a prática do CDS tem sido já até agora premonitória de um verdadeiro Estatuto de Oposição democrática. Em tudo nos temos, de facto, comportado não como antipoder, mas apenas como poder de oposição. Não pomos a Antígona que diz sempre não, porque também não pomos a hipótese de, no governo, vir a ser apenas a Antiantígona. Julgamos, assim, ter ajudado, pelo exemplo, a transformar interiormente o nosso país e a própria atitude clássica do governo perante a oposição. Queremos, porém, que se vá mais além, assentando em bases definitivas e claras tal progresso. Julgamos, por exemplo, que Portugal não é só um problema de política externa ou diálogo com potências estrangeiras como o Governo parece supor; que Portugal não é só um problema económico-social ou de «diálogo» com a Inter e a CIP como o Governo também parece acreditar; que Portugal não é só um problema militar ou de «diálogo» com os chefes do exército como durante os «pactos». Julgamos que o grande, o maior e o primeiro dos problemas portugueses é ainda um problema político, isto é, um problema de diálogo entre as duas forças mais gerais, mais concretas que, colocadas no centro nevrálgico da opção política, utilizam uma equivalente linguagem de diálogo -as forças do governo e as da oposição.
Julgamos, ainda, que este Estatuto de Oposição ajudará a melhorar quer a qualidade moral quer o funcionamento prático das nossas instituições.
Embora o Estatuto não possa aspirar a um sistema de alternância bipolar do poder, devido à coexistência entre nós, de dois tipos de oposição, um dito da «democracia popular» e outro de «democracia liberal», a verdade é que há certos progressos que podem ser feitos do ponto de vista da própria unificação quer das relações das oposições entre si quer das relações destas para o governo e o Presidente da República.
Em primeiro lugar, a oposição ou parte da oposição pode, no quadro deste Estatuto, conseguir, mais facilmente, quer em pontos concretos quer em questões metodológicas da democracia como a de saber se é possível constitucionalmente um governo minoritário - uma maior unidade de pontos de vista, porventura, susceptível de inspirar outras maiorias e alternativas de governo.
Em segundo lugar, parece-me que, em Portugal, cada partido funciona ainda muito na perspectiva de si próprio e da exclusiva manutenção e expansão do seu particular poder, seja ele partido de governo ou partido de oposição. Esperamos, por isso, que o Estatuto de Oposição force os partidos a pensar e agir em termos mais gerais, em termos de oposição e de governo e, portanto, em termos mais próximos do interesse nacional.
Em terceiro lugar, a estrutura das relações partidárias está, ainda, mais marcada por tiques de resistência - resistências do passado, como a antifascista, e a antigonçalvista; ou resistências imaginárias como a antiesquerdista ou a antidireitista, mais do que uma vocação de abertura e operacionalidade do governo ou da oposição que, por si, determinaria uma colaboração dos partidos em função de visões estratégicas, políticas e económicas comuns, mais do que uma vocação de abertura e operacionalidade da resistência, combate ou luta.
Parece mesmo manifestar-se, por vezes, uma esquisita e irresponsável auto-satisfação das organizações partidárias consigo próprias, que é, sem dúvida, uma forma de provincianismo democrático. A noção de um Estatuto de Oposição pode-nos ajudar a superar tal situação. Aliás, o pacto social de que tanto se fala será dificilmente levado a bom porto sem a correcta definição do pacto fundamental a ele anterior no nível da crise política que antecede e subordina a crise sindical.
Os próprios partidos se haviam constituído em função de uma espécie de frente popular de governo, diluída, embora - constituída por três partidos de esquerda -, apenas ficando de fora, para «inglês ver», um partido de centro, tudo num cenário próprio de tempos revolucionários. Ora, hoje, a dinâmica do poder em Portugal é outra. A frente popular ficou para trás, o centro de gravidade deslocou-se e procura-se, pelo contrário, a estabilização e a liberalização do sistema, pela integração do maior e mais apto número de forças até obter um equilíbrio duradouro de todas as tendências. O Estatuto de Oposição, pelas razões já aludidas, pode afinal contribuir para uma actualização e revisão do sistema de relações partidárias, quer directamente entre elas quer através de órgãos de coordenação política geral, como o Presidente da República, com quem a oposição deve manter relações directas e formais.
Um último ponto: o Estatuto de Oposição e o espírito de concurso público pelo governo que nele está subjacente é não só emulativo para o governo como se pretende, além disso, que seja moralmente regenerador. Sabe-se como, entre nós, a cunha, o compadrio e o apadrinhamento, pessoais e ideológicos, que tem a ver com o patriarcalismo residual do poder campeiam, como sempre, e hoje não menos do que antigamente. Uma séria acusação de favoritismo macula a imagem de muitas decisões públicas. A verdade é que o favoritismo é o recíproco, ou gémeo, moralmente idêntico, do saneamento ideológico.
Esta clandestina e anónima forma de poder pessoal é mais verrinosamente antidemocrática do que qualquer outra. Sabe-se, por exemplo, que a primeira qualificação para se ser gestor público é estar do lado do governo... O tratamento «privilegiado» que uma importante empresa pública deu a certa personalidade política recentemente ou a revogação de um despacho ministerial de reintegração de um administrador de instituição com eminentes responsabilidades públicas por jogo de influências políticas e pessoais, são exemplos recentes que tenho presentes. O mais repugnante é que a tudo isto se chama política, chegando-se ao ponto de considerar que não é bom político quem não aproveita ou não sabe fazer destas coisas... E quando hoje Carter fala de uma new morality ou d'Estaing se refere ao fim da politique politicienne, o menos que se pode dizer é que estamos pouco embalados para sair do nosso antigo mundo...
Embora ele não seja o único culpado de uma mentalidade que vem de trás - teme-se que ele, que tanto critica os caciques locais, represente por vezes o papel de um supercacique, de um cacique dos caciques.
O Sr. Cunha Simões (CDS): -Muito bem!
O Orador: - A todos os níveis do Estado é preciso substituir o sistema de influência e da cunha pelo sistema do concurso público! Quando é que se extinguirá, de uma vez, a «pesada herança» de um regime mental de morgadios, de capitanias, de «clientela à romana» ou de feudalismo larvar que parece ter-se prolongado, entre nós, até hoje? Não me parece haver dúvidas de que para o poder, uns continuarão a ser filhos e os outros enteados, enquanto governo e oposição não tiverem o mesmo estatuto político em Portugal.
Este projecto é vasto. E quem terá ainda coragem para pensar que as reformas profundas se fazem por decreto ou lei?
Reforma é, como diz Ortega y Gassett, criação de hábitos novos. O que nós esperamos, sobretudo, é que este Estatuto a ser aprovado, possa contar, pois, com os hábitos novos de todos os partidos de governo e de oposição aqui representados nesta Câmara...
Aplausos do CDS.

(11 de Maio de 1977, in Diário da Assembleia da República, nº107, págs. 3650 a 3653)